quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
DEBAIXO DE MAU TEMPO
A Sorte fora lançada. Quero me fazer entender, com essa sentença, que a decisão de nos transferir fora tomada. Durante vários meses eu e minha esposa nos ocupáramos por reiteradas vezes do assunto. Analisamos sob todos os aspectos possíveis o futuro na Zona Sul de nosso 'Rio grande de São Pedro'. Creio que a proximidade com as cidades de Pelotas conhecida como "Princesa do Sul", e a hospitaleira Rio Grande, carinhosamente apelidada de "Noiva-do-Mar", pesaram muito em nossa decisão. Duas das principais cidades gaúchas que ainda hoje se destacam no cenário sul-rio-grandense. Com o decorrer dos anos fomos descobrindo a causa dessas duas belas e históricas cidades exercerem tanto fascínio em todos quantos têm a oportunidade de as visitar. Dois Centros econômicos, culturais, políticos e de importância estratégica para nosso Estado e País. A proximidade com essas duas cidades e outras menores, mas também detentoras de atrativos históricos-culturais como Jaguarão, Piratini , Bagé ,Arroio Grande e outras, terá contribuído sobremaneira para nos fixarmos nessa região. Mais adiante procurarei detalhar melhor suas particularidades. Não foi nada fácil deixar nossa bela "Princesa Universitária", como era então conhecida a cidade de Santa Maria. Em muitas oportunidades indaguei para minha consciência se teria eu tomado a decisão acertada. Em silêncio ela respondia-me que só com o tempo eu saberia em que empreitada havia envolvido minha pequena família. Em dado momento decidimos que seria no dia nove de janeiro de 1976, ou não seria mais. Abarrotamos um caminhão especializado em transporte de mudanças com nossos pertences. Além de nossos móveis, ainda muito bem conservados, com apenas oito anos de uso, juntamos alguns remanescentes equipamentos e reagentes, destinados ao Laboratório Clínico. A maior parte dos aparelhos de análises eu já havia transportado no nosso 'fuscão' em viagens que realizáramos anteriormente. Fora um cuidado que tomei visando proteger os aparelhos, pois no caminhão poderiam sofrer avarias devido os solavancos nas estradas irregulares, em obras, naqueles dias. Alguns trechos estavam sendo pavimentados, outros ainda eram "carreteiras" históricas. O caminhão foi carregado no dia anterior e passou a noite no depósito da criteriosa transportadora Bortoluzzi. Saiu pela madrugada rumando para o sul. Naquela noite dormimos na casa dos pais de minha esposa. Assim poderíamos nos despedir dos amados sogros, pais e avós. Estes 'desconcertados' com nossa partida, especialmente do 'neto' que ajudaram a criar até os sete aninhos. Foi 'dura' mas teria que acontecer cedo ou tarde. Ainda hoje, quando presenciamos nosso amado filho tomar ônibus ou avião, em busca de seu destino, eu não consigo deixar de recordar 'nossos velhos' administrando corajosamente o fluído lacrimal que os traía no momento dos beijos e abraços de despedida. A exemplo deles enfrento o mesmo ritual mas não tenho a mesma compostura. Creio tratar-se de uma espécie de 'assim caminha a humanidade' atrelada por laços de amor, amizade e respeito. A emoção teria cedido lugar ao cansaço físico que acabou por nos nocautear e adormecemos. Na manhã seguinte, já íamos longe quando o aurorescer do novo dia veio anunciar que o astro-rei continuaria a iluminar nossos caminhos como sempre fizera. Para trás ficaram nossos amores e amigos. Ficou nossa 'calorosa' Santa Maria que muito amamos. Ficou também nosso simpático e acolhedor chalé que nos protegeu e uniu por cinco belos anos. Fora alugado. Mais tarde seria vendido para resgatar outros compromissos e assegurar a construção de nossa atual moradia em Pedro Osório. Na estrada fizemos o desjejum com biscoitos e café preto para ajudar a afugentar o sono. Viajávamos em compreensivo silêncio. Era como se tivéssemos praticado algo abominável. Pelo menos eu assim me sentia, muito embora uma espécie de voz interior me consolasse dizendo estar eu fazendo o que era possível. Mas como me perdoar por arrancar o menino de sua amada avó. Ele já atinava pra muita coisa. A Inteligência Universal dotou-o de um Espírito muito evoluído que mercê sua sensibilidade já fazia perceber as situações sem maiores traumas. Depois de algumas horas na estrada, alcançamos o caminhão com nossa mudança. Estava tudo bem. Tomamos a frente e fomos almoçar um 'fiambre' de frango enfarofado nas proximidades da cidade de Canguçu. Nessa época ainda não existiam restaurantes de beira-de-estrada, como atualmente. A construção dessa Rodovia Federal foi mais um investimento feito pelo Governo Militar com a visão de satisfazer a necessidade do escoamento da produção desde a "região celeiro" até o porto marítimo da "Noiva-do-Mar". Porto esse que estava recebendo investimentos na reforma e melhoramentos, para satisfazer a crescente e, ainda promissora exportação que se verificaria com o programa de incentivo a agricultura, conhecido pelo nome de 'PLANTE QUE O JOÃO GARANTE', já no último quartel de governo do regime militar. A certa altura as nuvens encubriram o sol. Logo adiante começou a chover. Novo contato com a transportadora que novamente acusou estar tudo em ordem. Combinamos que o próximo encontro seria já na Cidade pra onde nos destinávamos. Tinham o endereço. Não tinham dúvidas. Tocamos na frente. Chegamos em Pedro Osório na metade da tarde, sob chuva copiosa. Fomos direto para a casa que doravante seria nossa moradia e da qual tínhamos a chave. Era construída em alvenaria com acabamento em reboco cinza- escuro, com bastante simplicidade. Prédio antigo de 'quatro águas' com uma aba na frente. Muro também antigo e bastante surrado pelas intempéries. A rua da frente não era calçada. Com a chuvarada acabou por surgir um pequeno riacho onde em condições normais seria uma sarjeta. Minha esposa e filho 'cavaram', num bar das proximidades, uma garrafa de refrigerante que consumimos com os biscoitos restantes. Enquanto aguardávamos a transportadora, resolvemos explorar nossa nova moradia. Atendendo a minha orientação um pintor 'feito a machado' andou dando uma lambuzada com tinta branca em todo o interior da casa. Estava assim,'reformada' para os novos moradores. Naqueles dias não havia disponibilidade de casas de aluguel pois a demanda era muito grande devido aos funcionários das construtoras e suas famílias ocuparem todas as disponíveis. Conseguimos aquela casa, uma das menos ruins, por influência do meu amigo e ex-mestre boticário. Estávamos a observar a 'pintura' interna quando vimos um 'cordão' liquido de coloração marrom-escuro escorrer pela parede branca. A água da chuva guasqueada penetrara no aposento através de uma rachadura na junção das paredes. Causou-nos uma impressão tão desagradável que abraçado a minha esposa e filho nos apertamos e choramos os três. Lembramos do chalé que deixáramos em Santa Maria. Era mais humilde na construção, mas não tinha goteira. Não demorou muito e a transportadora chegou. Com chuva e a forte correnteza na sarjeta, não era possível descarregar. A solução foi atravessar uma guarda do caminhão sobre a correnteza e assim, à guisa de ponte, foram transferindo os nossos pertences para dentro da casa. Nenhum estrago de importância foi registrado. A transportadora tinha sido cuidadosa, em que pese as circunstâncias do transporte. Somente alguns arranhões foram verificados no roupeiro. No restante estava tudo a contento. Acertamos e despedimo-nos dos transportadores e começamos a viver nossa primeira noite na cidade, DEBAIXO DE MAU TEMPO. Jantamos, ainda do 'teimoso' fiambre de frango enfarofado regado com goles de refrigerante. Deitamos e dormimos o sono dos inocentes. Estava começando mais uma etapa na vida do 'rapa-do-taxo' e sua aguerrida família.
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Um comentário:
bah... Lembrei da cena! Perfeita e emotiva descrição do fato que dormia na lembrança... O texto está supremo!!!
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