Nossos dias na zona sul se foram transformando em meses e estes em anos. Hoje já somam trinta e quatro. Temos amigos em quase todos os quadrantes de nosso Rio Grande. Aos mais próximos vez que outra visitamos. Mas logo retornamos pra nossa querência. É tranqüila, simpática e hospitaleira. Aquerenciamo-nos à vida simples dessa região. O clima também nos é favorável. Nosso filho tem muitos amigos com os quais conviveu em sua infância e adolescência. Também os festivais de música nativista lhe ensejaram fazer muitas relações de amizade que ainda hoje curte onde quer que vá. Quando vem ao sul, o telefone de nossa residência não tem muita folga, pois sempre tem um ou outro amigo convidando pra algum reencontro, em torno de uma churrasqueira com uma picanha pingando graxa, ou um arroz de carreteiro com um charque bem curtido. Tudo isso ao som de música nativa, ao violão, em que é acompanhado pelos amigos. Nessas oportunidades meu peito se estufa premido pelo coração quase repleto de felicidade. Esse “quase” corre por conta de uma carga de mágoa que me pune por eu jamais ter desenvolvido a capacidade de acompanhá-lo, mesmo que fosse com um chocalho. Às vezes até me esforço pra assobiar uma “surrada cobrinha” já em desuso. Isto porque, tirando minha profissão, só conservo alguma habilidade com outros instrumentos mais xucros como enxada, pá, machado e vassoura. Esta pra varrer a garagem, em torno da churrasqueira, e embaixo da videira que em alguns anos é desencorajada pelas variações climáticas.
Ainda guardo lembrança de episódios em que me envolvi e que seriam cômicos não fossem as circunstâncias profissionais. Até que alguns, sem arranhar a ética, merecem ser lembrados. Por longo tempo, no início da vida profissional quando ainda era jovem, principalmente nos primeiros anos depois do acidente automobilístico, andei assustando meus familiares com viagens sonâmbulas. Em uma dessas “excursões” noturnas me vi frente a geladeira aberta do laboratório, na qual eu conservava um recipiente com material a ser examinado. Não encontrando o dito cujo resolvi cobrar, insistente e já deselegantemente, do meu suposto auxiliar:"Onde puseste a urina que deixei aqui, Ronaldo"?
Meu sobrinho, então adolescente nos visitava. Ele acordou assustado e sem nada entender, limitou-se a responder:
"Mas que urina, tio?”
Acordada por esse estranho diálogo, minha esposa veio conferir e encontrou-me agarrado ainda à porta do roupeiro como se fosse a tampa do refrigerador. Censurou-me, pelos maus modos. Voltamos todos a dormir. É claro que adormeci, acordei e passei algum tempo depois convivendo com a “cara de cusco que lambeu graxa”. Teve gozação, é claro! E prejuízo também. Creio que movido pelo temor de novas cobranças nosso sobrinho Ronaldo raras vezes nos visitou, depois dessa. Hoje com sua querida esposa Sarita e os belos filhos Matheus e Mariana, nos oferecem hospedagem na sua bela residência em Santa Maria, mas sempre me esquivo movido pelo temor de novo fiasco.
No âmbito farmacêutico um fato bastante corriqueiro, por mais de uma vez se repetiria. Quando solicitado a oferecer indicação de determinado medicamento que minha larga experiência me permite, costumo insistir na maneira de usar corretamente o mesmo. Outras vezes somos levados a interpretar os hieróglifos médicos para determinados pacientes. Por vezes a dúvida destes é maior. Frente à ordem clínica de “tomar uma colher de chá” a determinado intervalo, por mais clara que pareça, alguns pacientes ainda questionam “qual o chá que acompanha” a medicação prescrita. Ou então “sopa de que?”, quando a recomendação é tomar a medida de uma “colher de sopa”. Esses esclarecimentos devem ser oferecidos com humildade e sutileza para não perder o freguês e o amigo. Outra situação, que tende a desaparecer devido ao gradativo abandono dessa forma farmacêutica pelas indústrias do setor, é o uso de supositórios para combater problemas de amígdalas. Com certa freqüência o paciente fazia de conta que não entendia a maneira de usar e preferia engolir os ditos cujos, desejoso talvez de sentir um efeito mais rápido. E isto não é humor barato. Há casos em que os medicamentos deixam de mostrar sua eficiência e eficácia por falta de maiores esclarecimentos ao paciente. Destes, muitos reclamam que as bulas possuem explicações prolixas e em letras minúsculas e inadequadas a todos os usuários. Outra situação é a necessidade de injeção que, amiúde, os pacientes insistem em pretender “tomar” no músculo braquial em vez do grande glúteo ou nádegas. Neste caso objetiva-se facilitar a difusão da medicação que ocorre melhor em maior massa muscular além de diminuír os riscos de necrose local nas regiões menos musculosas e menos vascularizadas. São situações ainda presenciáveis em plena era digital da informação. E mais comuns do que possamos imaginar.
Também no nível das análises clínicas vivenciei situações embaraçosas. Coletar material para detecção de suposta morbidade no aparelho genital constituía-se imenso desafio. Mormente quando, premido pelo aumento no volume de serviço, eu delegava poder a uma recepcionista para orientar a candidata ao exame. Neste caso um episódio se tornou inesquecível. Na hora e data aprazada, uma paciente se apresentou para a coleta de secreção genital. Não recebera instruções minhas e nunca tinha feito o exame. Fora orientada a despir-se e acomodar-se na cama ginecológica com as pernas em posição apropriada. Por suposto pudor, ou por não ter entendido as instruções, ela não conseguia se ajeitar na maca ginecológica. Constrangida, conservava um discreto lençol protegendo sua intimidade. Julgando-a já preparada, entrei na saleta, pronto para coletar o material. Nesse momento, visivelmente nervosa, ela entendeu por bem, explicar o motivo de estar usando tantos absorventes femininos protegendo sua roupa íntima modelo “avoenga”. Na tentativa de se comunicar, repetia a expressão “compro calção... compro calção”. Estaria ela tentando me dizer que comprou a calçola, ou o "calção" apenas para aquela situação?
Tão nervosa e tremendo estava a humilde senhora que possibilitou-me coletar o material só depois de acalmar-se, embora repetisse sempre as mesmas truncadas palavras. Em dado momento perguntei-lhe quem lhe havia orientado a “comprar calção” pra fazer aquele exame? A resposta veio na forma de maior desestabilidade nervosa. Ao descer da maca ginecológica, a paciente escorregou e caiu, arrastando consigo toda a parafernália de equipamento de coleta, inclusive o colchonete que lhe veio por cima. Foi aquele estardalhaço! Correram minha esposa e uma auxiliar que nos assessorava. Felizmente a paciente não se machucou e continuou nossa cliente e amiga. Dias depois, ao lembrar o fato, deduzi que o objetivo da nervosa senhora era articular a frase “por precaução.”
Outro mal-entendido verificou-se com uma paciente já em meia idade. Marcada a data do exame, após todas as instruções de praxe oferecidas, ela compareceu para a coleta de sangue pela manhã cedo, em jejum. Quando minha esposa lhe perguntou: "E as fezes?” A paciente talvez não tenha compreendido a pergunta, mas respondeu mesmo assim: “Estão bem... Ficaram dormindo. Não fui avisada que fariam exame, também!” Por deficiência auditiva, costumava tentar adivinhar muito do que falavam, e por honestidade respondia conforme supunha entender o que lhe perguntavam. Resultado: jamais ficamos sabendo o nome completo de suas filhas. Essas coisas, que eu tenha tomado conhecimento, só aconteciam com o já lendário Rapa de Tacho. Querem mais? Adiante eu conto.