quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

ENTROPIAS LABORATORIAIS

Nossos dias na zona sul se foram transformando em meses e estes em anos. Hoje já somam trinta e quatro. Temos amigos em quase todos os quadrantes de nosso Rio Grande. Aos mais próximos vez que outra visitamos. Mas logo retornamos pra nossa querência. É tranqüila, simpática e hospitaleira. Aquerenciamo-nos à vida simples dessa região. O clima também nos é favorável. Nosso filho tem muitos amigos com os quais conviveu em sua infância e adolescência. Também os festivais de música nativista lhe ensejaram fazer muitas relações de amizade que ainda hoje curte onde quer que vá. Quando vem ao sul, o telefone de nossa residência não tem muita folga, pois sempre tem um ou outro amigo convidando pra algum reencontro, em torno de uma churrasqueira com uma picanha pingando graxa, ou um arroz de carreteiro com um charque bem curtido. Tudo isso ao som de música nativa, ao violão, em que é acompanhado pelos amigos. Nessas oportunidades meu peito se estufa premido pelo coração quase repleto de felicidade. Esse “quase” corre por conta de uma carga de mágoa que me pune por eu jamais ter desenvolvido a capacidade de acompanhá-lo, mesmo que fosse com um chocalho. Às vezes até me esforço pra assobiar uma “surrada cobrinha” já em desuso. Isto porque, tirando minha profissão, só conservo alguma habilidade com outros instrumentos mais xucros como enxada, pá, machado e vassoura. Esta pra varrer a garagem, em torno da churrasqueira, e embaixo da videira que em alguns anos é desencorajada pelas variações climáticas.
Ainda guardo lembrança de episódios em que me envolvi e que seriam cômicos não fossem as circunstâncias profissionais. Até que alguns, sem arranhar a ética, merecem ser lembrados. Por longo tempo, no início da vida profissional quando ainda era jovem, principalmente nos primeiros anos depois do acidente automobilístico, andei assustando meus familiares com viagens sonâmbulas. Em uma dessas “excursões” noturnas me vi frente a geladeira aberta do laboratório, na qual eu conservava um recipiente com material a ser examinado. Não encontrando o dito cujo resolvi cobrar, insistente e já deselegantemente, do meu suposto auxiliar:
"Onde puseste a urina que deixei aqui, Ronaldo"?
Meu sobrinho, então adolescente nos visitava. Ele acordou assustado e sem nada entender, limitou-se a responder:
"Mas que urina, tio?”
Acordada por esse estranho diálogo, minha esposa veio conferir e encontrou-me agarrado ainda à porta do roupeiro como se fosse a tampa do refrigerador. Censurou-me, pelos maus modos. Voltamos todos a dormir. É claro que adormeci, acordei e passei algum tempo depois convivendo com a “cara de cusco que lambeu graxa”. Teve gozação, é claro! E prejuízo também. Creio que movido pelo temor de novas cobranças nosso sobrinho Ronaldo raras vezes nos visitou, depois dessa. Hoje com sua querida esposa Sarita e os belos filhos Matheus e Mariana, nos oferecem hospedagem na sua bela residência em Santa Maria, mas sempre me esquivo movido pelo temor de novo fiasco.
No âmbito farmacêutico um fato bastante corriqueiro, por mais de uma vez se repetiria. Quando solicitado a oferecer indicação de determinado medicamento que minha larga experiência me permite, costumo insistir na maneira de usar corretamente o mesmo. Outras vezes somos levados a interpretar os hieróglifos médicos para determinados pacientes. Por vezes a dúvida destes é maior. Frente à ordem clínica de “tomar uma colher de chá” a determinado intervalo, por mais clara que pareça, alguns pacientes ainda questionam “qual o chá que acompanha” a medicação prescrita. Ou então “sopa de que?”, quando a recomendação é tomar a medida de uma “colher de sopa”. Esses esclarecimentos devem ser oferecidos com humildade e sutileza para não perder o freguês e o amigo. Outra situação, que tende a desaparecer devido ao gradativo abandono dessa forma farmacêutica pelas indústrias do setor, é o uso de supositórios para combater problemas de amígdalas. Com certa freqüência o paciente fazia de conta que não entendia a maneira de usar e preferia engolir os ditos cujos, desejoso talvez de sentir um efeito mais rápido. E isto não é humor barato. Há casos em que os medicamentos deixam de mostrar sua eficiência e eficácia por falta de maiores esclarecimentos ao paciente. Destes, muitos reclamam que as bulas possuem explicações prolixas e em letras minúsculas e inadequadas a todos os usuários. Outra situação é a necessidade de injeção que, amiúde, os pacientes insistem em pretender “tomar” no músculo braquial em vez do grande glúteo ou nádegas. Neste caso objetiva-se facilitar a difusão da medicação que ocorre melhor em maior massa muscular além de diminuír os riscos de necrose local nas regiões menos musculosas e menos vascularizadas. São situações ainda presenciáveis em plena era digital da informação. E mais comuns do que possamos imaginar.
Também no nível das análises clínicas vivenciei situações embaraçosas. Coletar material para detecção de suposta morbidade no aparelho genital constituía-se imenso desafio. Mormente quando, premido pelo aumento no volume de serviço, eu delegava poder a uma recepcionista para orientar a candidata ao exame. Neste caso um episódio se tornou inesquecível. Na hora e data aprazada, uma paciente se apresentou para a coleta de secreção genital. Não recebera instruções minhas e nunca tinha feito o exame. Fora orientada a despir-se e acomodar-se na cama ginecológica com as pernas em posição apropriada. Por suposto pudor, ou por não ter entendido as instruções, ela não conseguia se ajeitar na maca ginecológica. Constrangida, conservava um discreto lençol protegendo sua intimidade. Julgando-a já preparada, entrei na saleta, pronto para coletar o material. Nesse momento, visivelmente nervosa, ela entendeu por bem, explicar o motivo de estar usando tantos absorventes femininos protegendo sua roupa íntima modelo “avoenga”. Na tentativa de se comunicar, repetia a expressão “compro calção... compro calção”. Estaria ela tentando me dizer que comprou a calçola, ou o "calção" apenas para aquela situação?
Tão nervosa e tremendo estava a humilde senhora que possibilitou-me coletar o material só depois de acalmar-se, embora repetisse sempre as mesmas truncadas palavras. Em dado momento perguntei-lhe quem lhe havia orientado a “comprar calção” pra fazer aquele exame? A resposta veio na forma de maior desestabilidade nervosa. Ao descer da maca ginecológica, a paciente escorregou e caiu, arrastando consigo toda a parafernália de equipamento de coleta, inclusive o colchonete que lhe veio por cima. Foi aquele estardalhaço! Correram minha esposa e uma auxiliar que nos assessorava. Felizmente a paciente não se machucou e continuou nossa cliente e amiga. Dias depois, ao lembrar o fato, deduzi que o objetivo da nervosa senhora era articular a frase “por precaução.”
Outro mal-entendido verificou-se com uma paciente já em meia idade. Marcada a data do exame, após todas as instruções de praxe oferecidas, ela compareceu para a coleta de sangue pela manhã cedo, em jejum. Quando minha esposa lhe perguntou: "E as fezes?” A paciente talvez não tenha compreendido a pergunta, mas respondeu mesmo assim: “Estão bem... Ficaram dormindo. Não fui avisada que fariam exame, também!” Por deficiência auditiva, costumava tentar adivinhar muito do que falavam, e por honestidade respondia conforme supunha entender o que lhe perguntavam. Resultado: jamais ficamos sabendo o nome completo de suas filhas. Essas coisas, que eu tenha tomado conhecimento, só aconteciam com o já lendário Rapa de Tacho. Querem mais? Adiante eu conto.

UMA BALA PERDIDA

Depois de vários anos, finalmente a possibilidade de responsabilidade técnica por drogaria tinha se confirmado. Assumi a RT da farmácia interna da Santa Casa, cuja remuneração eu "trocava" pelo aluguel da área física ocupada pelo meu laboratório, incluindo despesas de água, luz e telefone. Eu também respondia por uma drogaria particular. O proprietário desta não sendo muito pontual comigo e também não trabalhando muito de acordo com as normas sanitárias, provocou meu pedido de demissão, para seu desagrado. Mais tarde quando a abertura política começou a engatinhar e de carona vinham parcerias a serem alinhavadas, eu e o proprietário de tal farmácia nos reencontramos num jantar com personalidades políticas locais e da região. Entre elas o delegado Roger Cavichiolli que estava sendo transferido de nossa cidade. Após os discursos, já ao dispersar, em tom conciliador resolvi dirigir a palavra ao comerciante de remédios. Ele rebateu com muitas ofensas e desaforos. Imprudente, aceitei a provocação e discutimos. No clímax da discussão, sem outro argumento, sacou o revólver e fez dois disparos contra mim. Retirei-me rapidamente, descendo as escadas do Restaurante Tio Willy, ganhando a rua, entrei no meu carro e fui pra casa. Lá me examinei e constatei ter sido atingido por um dos disparos. Relatei rapidamente o acontecido a minha esposa. Nosso filho estudava na ETFPEL em Pelotas, e ainda não havia chegado no ônibus noturno dos estudantes. Telefonei ao meu amigo ex-mestre boticário, que era presidente de partido político. Este quando chegou em minha casa, já trazia consigo um amigo, Júlio Cezar, que presenciara o incidente.
Ambos me levaram para ser socorrido na Santa Casa de Pelotas. Uma semana depois, com vários centímetros de intestino a menos, e com o corpo mais delgado retornei pra minha família e casa. Em seguida voltei ao trabalho, normalmente. De repente nova hospitalização. Desta vez o saudoso médico, Dr Guilhermo Reateguy Navarro providenciou meu internamento no mesmo nosocômio, para corrigir um processo de aderência intestinal que me havia acometido no pós-operatório, possivelmente por eu não ter observado o devido tempo de convalescença após a primeira cirurgia. Nessa oportunidade vivenciei uma situação que viria a marcar minha consciência transcendental, testemunhado creio que, inconscientemente ainda, por meu filho. O pós-operatório dessa cirurgia corretiva deixar-me-ia com muito mal-estar, ainda no hospital. Senti fortes reações adversas da anestesia e dos antibióticos e analgésicos. Passei a ter intolerância digestiva com intensas crises de vômitos. Estas me deixavam literalmente prostrado. Numa dessas crises meu filho, revezava-se com sua mãe, postado ao meu lado. Ficava comigo até chegar o momento de ir pra escola. Em dado momento, depois da crise emética, perdi a noção de consciência. Quando a recobrei comecei a relatar a ele cenas que eu pretendia ter vivenciado durante um suposto e breve passeio no corredor hospitalar que dava acesso a meu quarto. Meu filho deve lembrar-se de ter me dito: ”...mas pai, tu não saiu daí dessa cama!".
Constrangido pela suposta “rateada”, calei. Mas até hoje está presente em algum nível de minha memória que naquela oportunidade eu deparei no corredor com uma tabuleta suspensa, na qual estava escrito "Ala São Francisco". Minha consciência proíbe-me de negar que sou devoto desse Santo. Quanto a experiência em si, aqueles que porventura me honram lendo estas memórias, acolham como melhor sua razão lhes possa aprouver. Espero não estar proferindo uma homérica asneira ao confessar que não me surpreenderia se aquela fosse uma manifestação de percepção extra-sensorial. Por outro lado seria muito honroso e dignificante saber que sou um protegido de São Francisco, independente do sobrenome do santo protetor. Fato é que dias depois recebi alta, observei um período de convalescença “perna-de-anão” e voltei ao trabalho. São Francisco terá me recomendado ao Onipotente Criador que já me concede um quarto de século adicional. Possivelmente para que eu possa resgatar minhas pendências pretéritas.

O RIO PIRATINI MUY AMIGO

Atualmente nossas visitas são mais freqüentes a Pelotas, bela Princesa do Sul, localizada na margem ocidental da Lagoa dos Patos, quase na entrada do Canal São Gonçalo. Este, por muitos, tratado como rio, faz ligação com a Lagoa Mirim que em sua porção mais meridional serve de fronteira virtual entre nosso país e o vizinho Uruguai. A fascinante metrópole da zona sul, conta com inúmeros prédios históricos de arquitetura neocolonial, alguns muito bem conservados nos remetem à época do império brasileiro e ao áureo período em que a economia regional girava em torno da atividade pecuária e saladeiril que tantos dividendos gerou para os então conhecidos senhores de charqueadas. Por sinal eram esses abastados barões do charque que enviavam seus filhos a estudarem fora de nossa então Província de São Pedro. Às vezes iam até para a Europa, particularmente Lisboa e Paris. A maioria estudava em São Paulo ou Rio de Janeiro mesmo. Como é de se supor, acontecia de os jovens retornarem com formação profissional e também com hábitos sociais mais refinados em relação aos que aqui permaneciam. Com o tempo essa bela cidade e sua pujante gente passaram a ser objeto de escárnio, principalmente por parte daqueles que, não os conhecendo, decidem denegrir-lhes a imagem que ao fim e ao cabo não difere de muitas outras históricas e cultas cidades brasileiras que a influenciaram em outros tempos.
Pelotas possui uma completa infraestrutura que a torna uma das mais atraentes do sul de nosso estado e do país. Nos áureos tempos, seus teatros atraíam famosas companhias de revistas e orquestras que aqui chegavam por navios e mais tarde por trens. Difícil resistir ao apelo de seus numerosos restaurantes e churrascarias. Preferíamos o serviço à la carte, vez que o “espeto corrido” nos deixava empanzinados. Certa vez, no restaurante Cruz de Malta, após saborearmos um lombinho de suíno e galeto, pedimos um "Rei Alberto", sobremesa que meu filho nunca dispensava. Trouxeram o afamado doce que era mesmo muito bem servido. Meu filho serviu-se à vontade, girando a grande taça e atacando o “monarca”' por todos os lados, não conseguindo liquidar com o nobre doce, acabou desistindo. Eu o observava enquanto saboreava uma cerveja. Comentei o episódio de maneira jocosa. O guri repugnou. Desse dia em diante, nunca mais pediu aquela sobremesa, mesmo que fosse servida em elegantes recipientes de cristal.
De uma feita, estávamos almoçando em Pelotas e alguma coisa nos fez sentir saudade de nossa "Santa Maria da Boca do Monte". Convidei-os de brincadeira para irmos ver nossa gente. O menino se entusiasmou. Mesmo com os protestos de minha esposa que alegava não estarmos preparados para viagem, partimos assim mesmo. Lá compramos alguma roupa de muda e material de higiene. No outro dia retornamos comentando nossa intempestiva e improvisada viagem. Por seu lado Pelotas ainda conserva pujante o seu parque industrial alimentício. Como centro doceiro desponta entre os mais importantes da América do sul, refletido na FENADOCE, evento de ocorrência anual e prestígio internacional. Conta com vários museus, dois teatros de renome nacional como o Sete de Abril e o Guarani; e uma das mais antigas e prestigiosas Escolas Técnicas, o CEFET - Centro Federal de Educação Tecnológica. Nesta Instituição, quando ainda era chamada de ETFPEL, estudou e graduou-se em Eletrônica meu único filho. Hoje esse conglomerado ganhou status de universidade, contando com vários cursos técnicos e de especialização.
Outra instituição renomada é o CAVG, Centro Agrotécnico Visconde da Graça. A instituição está orientada para a formação de técnicos agropecuários e explica o fato de a cidade ter desenvolvido apurada vocação para centro industrial alimentício. Outras entidades universitárias são a UFPEL(Universidade Federal de Pelotas),com os cursos de Agronomia e de Ciências Jurídicas entre os mais antigos do Brasil. A moderna Faculdades Atlântico Sul de Pelotas, e a prestigiada UCPEL( Universidade Católica de Pelotas). Nesta, nos anos 1978/79, o Rapa de Tacho andou por dois anos tentando realizar o sonho maior de se formar médico. Porém aturdido pelas preocupações de administrar o laboratório clínico, a construção da moradia e assistir aulas de Medicina acabei por interromper o curso, a exemplo do que fizera anos antes, com a Farmácia. A diferença é que desta vez, além de já exercer uma profissão que me tomava a maior parte do tempo, minhas dificuldades eram agravadas pelos altos custos da universidade particular, inflação galopante e o já sensível e crescente atraso nos repasses de pagamentos pelos serviços prestados ao antigo INPS. Teria que optar por interromper a construção da casa ou protelar a formação médica. O ideal foi uma vez mais sacrificado. O prejuízo seria menor para minha família. A conclusão do curso de Medicina ficou para mais adiante, sine dies , quando as condições fossem mais favoráveis. O tempo passou e mostrou-me, pela ocorrência de episódios alheios a nossa vontade, que não mais seria possível atingir aquele objetivo.
Em 1979 um violento vendaval seguido de chuva, arrancou a cobertura do hospital em cujas dependências estava instalado meu laboratório. Ficamos onze dias sem energia elétrica. Perdi reagentes enzimáticos e tive aparelhos avariados. Coloquei alguns aparelhos no seguro. Outras tempestades e novos estragos vieram. Em certo momento a seguradora não mais indenizou os aparelhos elétricos queimados. Em 1983, estávamos nos instalando em dependências adequadas, alugadas, fora do hospital, durante os dias feriados de carnaval, para não prejudicar o serviço. Fomos surpreendidos pela “nossa” primeira enchente do Rio Piratini. Salvamos aparelhos e reagentes. De alguns móveis, de madeira laminada em compensado, restaram apenas as lâminas de fórmica. Outros estufaram e não mais tinham utilidade. Os divisórios empenaram. Estava inutilizado o local onde seria inaugurado o Laboratório Coelho, logo após o carnaval. Recolhemos o que ainda nos restou para dentro do hospital e aí permanecemos até 1992 quando nova enchente do “muy amigo Rio Piratini” nos obrigou a repensar e dar um basta à atividade de análises clínicas. Aproveitei a oportunidade fiz um balanço no meu tempo de serviço e pedi o benefício da aposentadoria pelo INPS. Transferi o Laboratório para um colega recém-formado e começamos a pensar em nos reunir ao nosso herdeiro. Nessa época nosso filho se encontrava, já há alguns anos, de volta a sua terra natal, a querida, culta e “muy caliente” Santa Maria. Retornara para prestar o serviço militar na base aérea daquela metrópole regional Coração do Rio Grande. Cumprido seu tempo regulamentar de convocado, e não desejoso de continuar, recebeu baixa das fileiras militares e começou seus estudos universitários. Imediatamente engajou-se na área da comunicação social. Havia se engraçado com a “latinha” antes de seguir para o quartel, durante rápida experiência numa rádio FM de Rio Grande. Agora em Santa Maria, decidira seguir o pedregoso caminho das ciências sociais. Em l990 estreou como repórter na RBS TV daquela cidade. Concomitantemente trataria de tocar em frente o curso de jornalismo na faculdade de comunicação da UFSM. Curso esse que viria a concluir alguns anos depois na cidade maravilhosa, como é conhecida a ex-antiga capital imperial brasileira.
Com a decisão de nosso filho, em transferir-se para o Rio de Janeiro, esfriou nossa intenção de retornar ao coração do estado, onde continuamos a visitar regularmente nossos parentes e amigos, enquanto existiram. Hoje ainda nos restam alguns familiares por lá. Os “troncos velhos” nos deixaram na saudade. A maioria das irmãs e irmãos, cunhados e sobrinhos também passaram para outro nível de existência. Alguns se transferiram para outras cidades ou estados. Dos amigos de infância e de mocidade, muitos também nos deixaram rumo ao “oriente eterno”. Sempre que possível procuro rever meus parentes e amigos, não me importando se estão mais pobres ou mais ricos. Contanto que estejam saudáveis e nos recebam, ficamos felizes e gratos ao Onipotente Criador. Temos netos, mas esses vivem com suas mães e como noras não são parentes carnais, raramente costumam procurar os avós paternos de seus filhos. Resta-nos aguardar que fiquem adultos e possam agir consoante o livre arbítrio de cada um.

NOIVA DO MAR

Em outras oportunidades visitávamos a histórica Rio Grande, a segunda cidade mais antiga de nosso Estado, cuja colonização Portuguesa remonta ao ano de 1.837, com seu casario antigo e sua hospitaleira e simpática população. Dona da concorrida Festa do Mar e do movimentado porto marítimo. Aqui surgiu há mais de meio século a Ipiranga, maior refinaria de petróleo particular do Brasil. O ativo centro industrial chegou a ostentar o título de cidade mais poluída do país, superando até Cubatão em SP. Nossas horas em Rio Grande eram bem preenchidas. “Esticávamos” até o balneário Cassino para banhos de mar, passeios na vagoneta à vela que se desloca sobre trilhos ao longo dos molhes. Estes construídos para quebrar as ondas que tendem a causar o entulhamento do canal de navegação e perturbam o acesso ao Porto. Visitávamos o navio Altair encalhado há alguns decênios e do qual, atualmente, enxerga-se apenas parte do esqueleto enferrujado. Outras vezes almoçávamos no Restaurante Caxias que apresenta ótimo cardápio. Nossos passeios eram mais freqüentes especialmente enquanto o menino, ainda criança, avançando para a adolescência, nos acompanhava. Nessas oportunidades saboreávamos um peixe recém fisgado e preparado pelo proprietário do Restaurante Costa, especializado em frutos do mar. Começávamos sempre com muitas casquinhas de siri, seguidas de Torta de Camarão e ”pra rebater”, o prato principal em que o Seu Costinha se esmerava no preparo: O Filé à Beatriz que jamais será esquecido.
Freqüentemente nos fazíamos acompanhar de um casal de riograndinos que trabalhavam e residiam em Pedro Osório, mas veraneavam com a família no Cassino. Ele era médico, e nossas famílias ficaram amigas até hoje. Doutor Constantino era muito alegre, comunicativo e brincalhão. Tinha sempre um causo ou anedota inédita pra fazer o mais sisudo Rapa de Tacho se desmanchar em gargalhadas. Muito amigo do Menino, costumava presenteá-lo com pacotes de “pastilhas”. Ao abrir o presente, meu filho deparava sempre com muitas embalagens de preservativos Jontex. Creio que até hoje ele conserva estoque dessa proteção, presente daquele amigão cujas excentricidades e proezas ainda recordamos com muito carinho. Seu primeiro veículo motorizado foi um velho Jeep-Willys de cor amarela, apelidado por 'fumaça' que o transportava pra toda parte, sempre envolto em densa nuvem de fuligem, e que por vezes sua esposa tinha que dar um empurrãozinho para o motor pegar. Seguiu-se um Chevette cor de vinho. Certa vez nos convidou para irmos com ele e sua adorável esposa Mercedes ver a chácara que acabara de comprar no distrito de Vila Freire, interior do hoje município de Cerrito. Naqueles dias pertencia ao município de Pedro Osório onde, ainda hoje, moro com minha esposa. A estrada estava muito empoeirada e ele acelerava o chevetinho ao máximo. Quando chegamos na chácara não nos reconhecemos uns aos outros. Nossos cabelos estavam impregnados de pó e os olhos eram como se tivéssemos mergulhado na lama e depois emergido. Lavamo-nos e fomos conferir a criação de aves e de suínos. A plantação de milho doce já estava com produção estimada, avaliada e vendida antecipadamente para as indústrias de conservas alimentícias de Pelotas. Retornamos por outra estrada menos poeirenta. Algum tempo depois uma camionete Chevrolet branca tomaria o lugar do chevetinho que já havia sido retirado de um atoleiro com o auxílio de um velho trator, também de sua propriedade. Com a camionete tirou vários “fininhos” no corredor de entrada da garagem, exprimido entre o muro e a parede da moradia, com menos de cinco centímetros de espaço, de cada lado. Entrava e saía acelerado sem acidente. Acredito porque que vi. Se me contassem duvidaria, certamente.
Pelas tantas adotou um filhote de cão da raça Bull Terrier que depois de adulto atendia pelo nome de Torah( ou seria Thora?) e causava terror aos outros cachorros. Não oferecia risco algum às pessoas, vez que estava sempre atrás de grades. Mesmo assim eu tributava o maior respeito ao 'temível' . Confessava-se apaixonado por Rio Grande, sua cidade natal, onde passava grande parte de suas folgas profissionais. Na enchente de 1983 lá se encontrava em férias com a família. Avisado que sua residência e consultório estavam alagados compareceu para conferir a situação. Serenamente empilhou os móveis; roupas e livros colocou-os no mais alto possível. Ao verificar o refrigerador deparou com um espumante ainda frio. Estourou-o, bebeu o precioso líquido, fechou a casa e voltou pra sua família. Alguns dias depois vieram com a empregada para resgatar o que fosse possível. Absolutamente tranqüilo, em momento algum demonstrou insatisfação, ou mesmo revolta. Profissional humanitário, honesto e competentíssimo. Tinha muita consideração com os mais humildes e deserdados pela sorte. Grande apreciador de pimenta. Comia de colher como se fosse feijão. Amante da MPB e admirador do Chico Buarque. Da música regional gostava de ouvir repetidamente "Morocha", interpretada por meu filho ao violão. Não tolerava desonestidade especialmente no domínio profissional. Era incapaz de revidar a uma agressão mesmo quando no pleno domínio de seus direitos. Silenciava e tocava sua vida com a maior dignidade possível.
Certa manhã apareceu em meu Laboratório e colheu sangue para realizar uma numerosa bateria de exames. Apresentei-lhe os resultados e meu parecer. Dias depois disse que iria seguir minha sugestão. Foi consultar um médico de sua confiança na sua cidade, que dispõe de uma faculdade de Medicina das mais conceituadas de nosso estado, com letra "A" na avaliação do MEC em 2008. Enviaram-no a Capital. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre diagnosticaram "câncer de intestino" em avançado estágio. Não esmoreceu. Continuou trabalhando regularmente e lutando com sua doença. Sempre bem humorado. Apelou, humildemente, pra todos os recursos que lhe sugeriam. Enviou amostra sanguínea para preparação de vacina específica no Japão. Tomou a vacina por longo tempo. Melhorou a saúde, recuperou o peso e se atirou ao trabalho como antes. Lá pelas tantas, em certa manhã, visitou seus pacientes hospitalizados, depois passando no meu Laboratório, me informaria sentenciando:
"professor"- era assim que carinhosamente me tratava- "vou me submeter a uma laparotomia exploratória. Na minha terra". Só me ocorreu desejar-lhe 'felicidades'!.
Foi, fez o que prometera e dali em diante não mais se recuperou. Jamais perdeu a esperança e muito menos o bom humor. Dizia, em tom de blague, que me “amava” devido ao fato de ter recebido transfusão do sangue da minha mulher. Visitando-o no hospital, certa vez, o encontrei muito emagrecido e fraco. Sua esposa disse-me que ele não estava querendo se alimentar. Argumentei que ele como profissional sabia da importância daquele procedimento. Haviam servido o jantar a poucos instantes. Entusiasmou com minha presença e, num rompante de irreverência, pediu para a esposa: "me passa essa porra de galinha pra eu comer!”.
Mas seu estômago, agredido pela medicação e efeitos da radioterapia, rejeitaria o alimento novamente. Quando decidi me retirar tomou-me a mão e, com lágrimas nos olhos perguntou-me se ele "escaparia daquela vez". Perturbado para responder, só pude articular as palavras "Se Deus quiser, meu velho".
Dei-lhe as costas, ganhei a rua e, perplexo, retornei pra Pedro Osório. Dois dias depois veio a notícia de seu falecimento. Deus havia lhe poupado, e aos seus familiares, maiores sofrimentos mas retirara do nosso convívio um dos profissionais que mais amara a vida, e que com respeito e competência se dedicara a minorar o sofrimento, quando não lhe fosse possível salvar a vida do próximo. Certamente está junto do Onipotente Criador, auxiliando-O na administração da serenidade, bondade e otimismo, atributos com que serão contemplados alguns espíritos candidatos a ocupar um lugar entre os que estagiam neste nível de existência.
Mercedes, sua esposa e infatigável companheira de todas as horas alegres e tristes, é professora. Serena, resignada e sem esmorecimento esteve sempre ao seu lado, durante sua longa doença. Após seu falecimento passou a lecionar em duas escolas e ainda em cursinhos para criar, educar e formar o filho Giuzeppe Luiggi. Hoje aquele menino carinhosamente conhecido por Bepe é Procurador da República. “Doutor Bepe” certamente herdou de seus genitores muita raça, determinação, inteireza de caráter, probidade, e ainda todos os demais atributos que o tornam digno do honroso cargo que ocupa. Lídimo defensor dos interesses dos menos afortunados. Sua mãe e mais alguns bons amigos, seus familiares, residentes na Noiva do Mar são motivos para que lá retornemos, porém, cada vez mais espaçadamente. O aumento da população em trânsito, veículos mais numerosos e trânsito mais intenso e perigoso combinados com o buraco no ozônio nos têm feito espaçar a busca da maior praia de água salgada do mundo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

EN LA BANDA ORIENTAL

Decorrido mais algum tempo percebi, juntamente com minha esposa e filho que ainda uma vez, a Inteligência Universal manifestava-se através da Lei Natural da Causalidade. Penso que esta determina uma constante reorganização da energia cósmica, de modo que se estabeleça o equilíbrio e a harmonia universal. Após alguns contratempos, passamos a experimentar certa sensação de tranqüilidade. E assim nos finais de semana, por vezes, realizávamos visitas exploratórias às vizinhas cidades, principalmente Pelotas, Rio Grande e Jaguarão. Cruzávamos a ponte internacional sobre o Rio Jaguarão e íamos à pequena cidade uruguaia de Rio Branco que, embora muito humilde com seus velhos prédios mal conservados e ruas esburacadas, nos atraia com a qualidade de alguns produtos como carnes, derivados do leite, cerveja em litro e principalmente as roupas em lã. Geralmente adquiríamos roupas na loja Doriman de propriedade da senhora Manuela. Uma castelhana “turcaça” de nariz adunco levemente avantajado, muy astuta, que não permitia que ninguém deixasse sua tienda sem adquirir alguma ropa. Mesmo que fosse uma blusa tipo cashmira ou de pura lana cruda. Isto em pleno verão escaldante cuja temperatura nada fica a dever para a de muitos dias cariocas. Tão ladina era a comerciante que aceitava até cheques de bancos brasileiros, parcelados e pré-datados. Creio que essa senhora já teria sido vendedora de eletrodomésticos, especialmente de refrigeradores para os esquimós, na Lapônia, ou Sibéria. Ao lado dessa tienda existiu por muito tempo um antigo restaurante e parrillada onde costumávamos comer um chivito e degustar uma barrigudinha botelha de cerveza Norteña ou Patrícia, bien helada que eu me esforçava pra pedir no melhor portunhol, sob os indisfarçados e críticos risos de meu filho e sua mãe. Por falta de incentivo acabei esquecendo o sotaque dos hermanos orientales.

Tudo era degustado ao som de tangos e boleros platinos reproduzidos ainda em vinil, num antigo e eficiente modelo semi-automático de toca-discos. Este cambiava a música ou o disco com uma espécie de braço mecânico-automático quando se acionava o dispositivo manual. A seguir atravessávamos a calle e nossa atenção, por vezes, voltava-se para um estranho, mas bem conservado e fumacento ônibus de fabricação inglesa, de antes da última grande guerra, movido a diesel, cuja particularidade era um canto chanfrado em que se abria a porta por onde uns passageiros saíam e outros entravam. Invariavelmente após a troca de passageiros o coletivo "vovô" acelerava para retomar a marcha e logo deixava uma densa e parda nuvem de fuligem que envolvia todos os que acabavam de desembarcar e mais alguns transeuntes menos avisados. Se o câmbio nos estava favorável comprávamos alguns dólares e íamos ao almacén da Tia Julia cuja amable proprietária logo se nos afeiçoou. Mais tarde perguntaria sempre pelo “menino”, que nessas alturas já retornara para Santa Maria. Tia Julia nos fornecia cervejas, vinhos varietais, dos quais o cabernet Santa Rosa da Vinícola Carrau - mesmo grupo Lacave, de Caxias do Sul; era meu preferido. Azeite de oliva Carbonell, ou Gallo, azeitonas pretas chilenas, galletas, galletitas, dulce de leche, alfajores e quesos. Ah! Os belos e variados quesos coloniales! Entre os tipos Dambo, Gorgonzolla, Rochefort e o precioso Provolone defumado, nos era difícil escolher. Entonces, comprávamos um bom “naco” de cada um. Ao final resultava vários quilos que permitiam nos entupir de queijo durante muitos dias. Às vezes conseguíamos também uma tripa de tenro salame Hornimans, daquelas bem calibrosas e quase um metro de comprimento.

Garantidas as compras no ainda incipiente centro comercial daqueles dias, seguíamos até o bairro da Coxilha, localizado logo adiante, ao sul, na saída para Montevidéu. Como o próprio nome sugere, o bairro fica mais no alto, fora do alcance das águas durante as cheias do Rio Jaguarão. Suas calles já eram melhores conservadas. As casas residenciais e prédios comerciais mais modernos e promissores, com algum restaurante. Quando o horário favorecia, devorávamos um assado de entrecot com arroz e ensalada no Taquary. Sempre regados com uma Norteña estupidamente helada e assessorados pelas famosas galletitas que eram consumidas com manteca à guisa de aperitivo. O menino e su madrecita bebiam Crush, ou Coca-cola mesmo. Na sobremesa eles saboreavam una cassata, enquanto eu acabava de degustar a saborosa e gelada "loira" de los orientales. De quando em vez dávamos uma esticada até o tranqüilo e aprazível balneário uruguaio Lago Merin, distante cerca de vinte quilômetros, na margem meridional da nossa Lagoa Mirim. Na volta passávamos na antiga Farmácia Fleming pra adquirir a tradicional loção após barba Doctor Selby. Logo adiante, próximo a Praça Rio Branco, quase na entrada da Ponte Internacional, parávamos em uma carniceria pra comprar filé mignon e a metade de um capon que nos garantiria um cheiroso, macio e saboroso assado de ovino, no espeto, à moda riograndense.

Abastecidos assim, nos despedíamos tranqüilamente da pequena cidade que muitos anos depois receberia investimentos e incentivos del gobierno oriental e passaria a dispor de atraentes shopping centers, onde hoje pode-se comprar desde perfumes e vinhos a relógios e alguns eletroeletrônicos, até com cartão de crédito. Retornávamos a Jaguarão através da notável e já histórica ponte. Algumas vezes nos detínhamos nessa simpática cidade para saborearmos o assado da Churrascaria do Paysano. Depois íamos apreciar a arquitetura neocolonial portuguesa ainda presente nas fachadas e linhas do casario cuja idade chega aos dois séculos. Numa dessas oportunidades conhecemos as ruínas da antiga enfermaria militar que teria servido de hospital para os feridos em “encarniçadas” batalhas travadas nessa região. O Teatro Esperança, um dos mais antigos de nosso estado, é outro importante atrativo turístico da Cidade Heróica. Nessa cidade o Coronel Bento Gonçalves da Silva fora comandante da guarnição militar alguns anos antes de liderar a eclosão da revolução farroupilha.