Em outras oportunidades visitávamos a histórica Rio Grande, a segunda cidade mais antiga de nosso Estado, cuja colonização Portuguesa remonta ao ano de 1.837, com seu casario antigo e sua hospitaleira e simpática população. Dona da concorrida Festa do Mar e do movimentado porto marítimo. Aqui surgiu há mais de meio século a Ipiranga, maior refinaria de petróleo particular do Brasil. O ativo centro industrial chegou a ostentar o título de cidade mais poluída do país, superando até Cubatão em SP. Nossas horas em Rio Grande eram bem preenchidas. “Esticávamos” até o balneário Cassino para banhos de mar, passeios na vagoneta à vela que se desloca sobre trilhos ao longo dos molhes. Estes construídos para quebrar as ondas que tendem a causar o entulhamento do canal de navegação e perturbam o acesso ao Porto. Visitávamos o navio Altair encalhado há alguns decênios e do qual, atualmente, enxerga-se apenas parte do esqueleto enferrujado. Outras vezes almoçávamos no Restaurante Caxias que apresenta ótimo cardápio. Nossos passeios eram mais freqüentes especialmente enquanto o menino, ainda criança, avançando para a adolescência, nos acompanhava. Nessas oportunidades saboreávamos um peixe recém fisgado e preparado pelo proprietário do Restaurante Costa, especializado em frutos do mar. Começávamos sempre com muitas casquinhas de siri, seguidas de Torta de Camarão e ”pra rebater”, o prato principal em que o Seu Costinha se esmerava no preparo: O Filé à Beatriz que jamais será esquecido.
Freqüentemente nos fazíamos acompanhar de um casal de riograndinos que trabalhavam e residiam em Pedro Osório, mas veraneavam com a família no Cassino. Ele era médico, e nossas famílias ficaram amigas até hoje. Doutor Constantino era muito alegre, comunicativo e brincalhão. Tinha sempre um causo ou anedota inédita pra fazer o mais sisudo Rapa de Tacho se desmanchar em gargalhadas. Muito amigo do Menino, costumava presenteá-lo com pacotes de “pastilhas”. Ao abrir o presente, meu filho deparava sempre com muitas embalagens de preservativos Jontex. Creio que até hoje ele conserva estoque dessa proteção, presente daquele amigão cujas excentricidades e proezas ainda recordamos com muito carinho. Seu primeiro veículo motorizado foi um velho Jeep-Willys de cor amarela, apelidado por 'fumaça' que o transportava pra toda parte, sempre envolto em densa nuvem de fuligem, e que por vezes sua esposa tinha que dar um empurrãozinho para o motor pegar. Seguiu-se um Chevette cor de vinho. Certa vez nos convidou para irmos com ele e sua adorável esposa Mercedes ver a chácara que acabara de comprar no distrito de Vila Freire, interior do hoje município de Cerrito. Naqueles dias pertencia ao município de Pedro Osório onde, ainda hoje, moro com minha esposa. A estrada estava muito empoeirada e ele acelerava o chevetinho ao máximo. Quando chegamos na chácara não nos reconhecemos uns aos outros. Nossos cabelos estavam impregnados de pó e os olhos eram como se tivéssemos mergulhado na lama e depois emergido. Lavamo-nos e fomos conferir a criação de aves e de suínos. A plantação de milho doce já estava com produção estimada, avaliada e vendida antecipadamente para as indústrias de conservas alimentícias de Pelotas. Retornamos por outra estrada menos poeirenta. Algum tempo depois uma camionete Chevrolet branca tomaria o lugar do chevetinho que já havia sido retirado de um atoleiro com o auxílio de um velho trator, também de sua propriedade. Com a camionete tirou vários “fininhos” no corredor de entrada da garagem, exprimido entre o muro e a parede da moradia, com menos de cinco centímetros de espaço, de cada lado. Entrava e saía acelerado sem acidente. Acredito porque que vi. Se me contassem duvidaria, certamente.Pelas tantas adotou um filhote de cão da raça Bull Terrier que depois de adulto atendia pelo nome de Torah( ou seria Thora?) e causava terror aos outros cachorros. Não oferecia risco algum às pessoas, vez que estava sempre atrás de grades. Mesmo assim eu tributava o maior respeito ao 'temível' . Confessava-se apaixonado por Rio Grande, sua cidade natal, onde passava grande parte de suas folgas profissionais. Na enchente de 1983 lá se encontrava em férias com a família. Avisado que sua residência e consultório estavam alagados compareceu para conferir a situação. Serenamente empilhou os móveis; roupas e livros colocou-os no mais alto possível. Ao verificar o refrigerador deparou com um espumante ainda frio. Estourou-o, bebeu o precioso líquido, fechou a casa e voltou pra sua família. Alguns dias depois vieram com a empregada para resgatar o que fosse possível. Absolutamente tranqüilo, em momento algum demonstrou insatisfação, ou mesmo revolta. Profissional humanitário, honesto e competentíssimo. Tinha muita consideração com os mais humildes e deserdados pela sorte. Grande apreciador de pimenta. Comia de colher como se fosse feijão. Amante da MPB e admirador do Chico Buarque. Da música regional gostava de ouvir repetidamente "Morocha", interpretada por meu filho ao violão. Não tolerava desonestidade especialmente no domínio profissional. Era incapaz de revidar a uma agressão mesmo quando no pleno domínio de seus direitos. Silenciava e tocava sua vida com a maior dignidade possível.
Certa manhã apareceu em meu Laboratório e colheu sangue para realizar uma numerosa bateria de exames. Apresentei-lhe os resultados e meu parecer. Dias depois disse que iria seguir minha sugestão. Foi consultar um médico de sua confiança na sua cidade, que dispõe de uma faculdade de Medicina das mais conceituadas de nosso estado, com letra "A" na avaliação do MEC em 2008. Enviaram-no a Capital. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre diagnosticaram "câncer de intestino" em avançado estágio. Não esmoreceu. Continuou trabalhando regularmente e lutando com sua doença. Sempre bem humorado. Apelou, humildemente, pra todos os recursos que lhe sugeriam. Enviou amostra sanguínea para preparação de vacina específica no Japão. Tomou a vacina por longo tempo. Melhorou a saúde, recuperou o peso e se atirou ao trabalho como antes. Lá pelas tantas, em certa manhã, visitou seus pacientes hospitalizados, depois passando no meu Laboratório, me informaria sentenciando:
"professor"- era assim que carinhosamente me tratava- "vou me submeter a uma laparotomia exploratória. Na minha terra". Só me ocorreu desejar-lhe 'felicidades'!.
Foi, fez o que prometera e dali em diante não mais se recuperou. Jamais perdeu a esperança e muito menos o bom humor. Dizia, em tom de blague, que me “amava” devido ao fato de ter recebido transfusão do sangue da minha mulher. Visitando-o no hospital, certa vez, o encontrei muito emagrecido e fraco. Sua esposa disse-me que ele não estava querendo se alimentar. Argumentei que ele como profissional sabia da importância daquele procedimento. Haviam servido o jantar a poucos instantes. Entusiasmou com minha presença e, num rompante de irreverência, pediu para a esposa: "me passa essa porra de galinha pra eu comer!”.
Mas seu estômago, agredido pela medicação e efeitos da radioterapia, rejeitaria o alimento novamente. Quando decidi me retirar tomou-me a mão e, com lágrimas nos olhos perguntou-me se ele "escaparia daquela vez". Perturbado para responder, só pude articular as palavras "Se Deus quiser, meu velho".
Dei-lhe as costas, ganhei a rua e, perplexo, retornei pra Pedro Osório. Dois dias depois veio a notícia de seu falecimento. Deus havia lhe poupado, e aos seus familiares, maiores sofrimentos mas retirara do nosso convívio um dos profissionais que mais amara a vida, e que com respeito e competência se dedicara a minorar o sofrimento, quando não lhe fosse possível salvar a vida do próximo. Certamente está junto do Onipotente Criador, auxiliando-O na administração da serenidade, bondade e otimismo, atributos com que serão contemplados alguns espíritos candidatos a ocupar um lugar entre os que estagiam neste nível de existência.
Mercedes, sua esposa e infatigável companheira de todas as horas alegres e tristes, é professora. Serena, resignada e sem esmorecimento esteve sempre ao seu lado, durante sua longa doença. Após seu falecimento passou a lecionar em duas escolas e ainda em cursinhos para criar, educar e formar o filho Giuzeppe Luiggi. Hoje aquele menino carinhosamente conhecido por Bepe é Procurador da República. “Doutor Bepe” certamente herdou de seus genitores muita raça, determinação, inteireza de caráter, probidade, e ainda todos os demais atributos que o tornam digno do honroso cargo que ocupa. Lídimo defensor dos interesses dos menos afortunados. Sua mãe e mais alguns bons amigos, seus familiares, residentes na Noiva do Mar são motivos para que lá retornemos, porém, cada vez mais espaçadamente. O aumento da população em trânsito, veículos mais numerosos e trânsito mais intenso e perigoso combinados com o buraco no ozônio nos têm feito espaçar a busca da maior praia de água salgada do mundo.
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