domingo, 10 de janeiro de 2010

EN LA BANDA ORIENTAL

Decorrido mais algum tempo percebi, juntamente com minha esposa e filho que ainda uma vez, a Inteligência Universal manifestava-se através da Lei Natural da Causalidade. Penso que esta determina uma constante reorganização da energia cósmica, de modo que se estabeleça o equilíbrio e a harmonia universal. Após alguns contratempos, passamos a experimentar certa sensação de tranqüilidade. E assim nos finais de semana, por vezes, realizávamos visitas exploratórias às vizinhas cidades, principalmente Pelotas, Rio Grande e Jaguarão. Cruzávamos a ponte internacional sobre o Rio Jaguarão e íamos à pequena cidade uruguaia de Rio Branco que, embora muito humilde com seus velhos prédios mal conservados e ruas esburacadas, nos atraia com a qualidade de alguns produtos como carnes, derivados do leite, cerveja em litro e principalmente as roupas em lã. Geralmente adquiríamos roupas na loja Doriman de propriedade da senhora Manuela. Uma castelhana “turcaça” de nariz adunco levemente avantajado, muy astuta, que não permitia que ninguém deixasse sua tienda sem adquirir alguma ropa. Mesmo que fosse uma blusa tipo cashmira ou de pura lana cruda. Isto em pleno verão escaldante cuja temperatura nada fica a dever para a de muitos dias cariocas. Tão ladina era a comerciante que aceitava até cheques de bancos brasileiros, parcelados e pré-datados. Creio que essa senhora já teria sido vendedora de eletrodomésticos, especialmente de refrigeradores para os esquimós, na Lapônia, ou Sibéria. Ao lado dessa tienda existiu por muito tempo um antigo restaurante e parrillada onde costumávamos comer um chivito e degustar uma barrigudinha botelha de cerveza Norteña ou Patrícia, bien helada que eu me esforçava pra pedir no melhor portunhol, sob os indisfarçados e críticos risos de meu filho e sua mãe. Por falta de incentivo acabei esquecendo o sotaque dos hermanos orientales.

Tudo era degustado ao som de tangos e boleros platinos reproduzidos ainda em vinil, num antigo e eficiente modelo semi-automático de toca-discos. Este cambiava a música ou o disco com uma espécie de braço mecânico-automático quando se acionava o dispositivo manual. A seguir atravessávamos a calle e nossa atenção, por vezes, voltava-se para um estranho, mas bem conservado e fumacento ônibus de fabricação inglesa, de antes da última grande guerra, movido a diesel, cuja particularidade era um canto chanfrado em que se abria a porta por onde uns passageiros saíam e outros entravam. Invariavelmente após a troca de passageiros o coletivo "vovô" acelerava para retomar a marcha e logo deixava uma densa e parda nuvem de fuligem que envolvia todos os que acabavam de desembarcar e mais alguns transeuntes menos avisados. Se o câmbio nos estava favorável comprávamos alguns dólares e íamos ao almacén da Tia Julia cuja amable proprietária logo se nos afeiçoou. Mais tarde perguntaria sempre pelo “menino”, que nessas alturas já retornara para Santa Maria. Tia Julia nos fornecia cervejas, vinhos varietais, dos quais o cabernet Santa Rosa da Vinícola Carrau - mesmo grupo Lacave, de Caxias do Sul; era meu preferido. Azeite de oliva Carbonell, ou Gallo, azeitonas pretas chilenas, galletas, galletitas, dulce de leche, alfajores e quesos. Ah! Os belos e variados quesos coloniales! Entre os tipos Dambo, Gorgonzolla, Rochefort e o precioso Provolone defumado, nos era difícil escolher. Entonces, comprávamos um bom “naco” de cada um. Ao final resultava vários quilos que permitiam nos entupir de queijo durante muitos dias. Às vezes conseguíamos também uma tripa de tenro salame Hornimans, daquelas bem calibrosas e quase um metro de comprimento.

Garantidas as compras no ainda incipiente centro comercial daqueles dias, seguíamos até o bairro da Coxilha, localizado logo adiante, ao sul, na saída para Montevidéu. Como o próprio nome sugere, o bairro fica mais no alto, fora do alcance das águas durante as cheias do Rio Jaguarão. Suas calles já eram melhores conservadas. As casas residenciais e prédios comerciais mais modernos e promissores, com algum restaurante. Quando o horário favorecia, devorávamos um assado de entrecot com arroz e ensalada no Taquary. Sempre regados com uma Norteña estupidamente helada e assessorados pelas famosas galletitas que eram consumidas com manteca à guisa de aperitivo. O menino e su madrecita bebiam Crush, ou Coca-cola mesmo. Na sobremesa eles saboreavam una cassata, enquanto eu acabava de degustar a saborosa e gelada "loira" de los orientales. De quando em vez dávamos uma esticada até o tranqüilo e aprazível balneário uruguaio Lago Merin, distante cerca de vinte quilômetros, na margem meridional da nossa Lagoa Mirim. Na volta passávamos na antiga Farmácia Fleming pra adquirir a tradicional loção após barba Doctor Selby. Logo adiante, próximo a Praça Rio Branco, quase na entrada da Ponte Internacional, parávamos em uma carniceria pra comprar filé mignon e a metade de um capon que nos garantiria um cheiroso, macio e saboroso assado de ovino, no espeto, à moda riograndense.

Abastecidos assim, nos despedíamos tranqüilamente da pequena cidade que muitos anos depois receberia investimentos e incentivos del gobierno oriental e passaria a dispor de atraentes shopping centers, onde hoje pode-se comprar desde perfumes e vinhos a relógios e alguns eletroeletrônicos, até com cartão de crédito. Retornávamos a Jaguarão através da notável e já histórica ponte. Algumas vezes nos detínhamos nessa simpática cidade para saborearmos o assado da Churrascaria do Paysano. Depois íamos apreciar a arquitetura neocolonial portuguesa ainda presente nas fachadas e linhas do casario cuja idade chega aos dois séculos. Numa dessas oportunidades conhecemos as ruínas da antiga enfermaria militar que teria servido de hospital para os feridos em “encarniçadas” batalhas travadas nessa região. O Teatro Esperança, um dos mais antigos de nosso estado, é outro importante atrativo turístico da Cidade Heróica. Nessa cidade o Coronel Bento Gonçalves da Silva fora comandante da guarnição militar alguns anos antes de liderar a eclosão da revolução farroupilha.

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