Desde criança ouço certas sentenças de caráter prático e popular, expressas de maneira resumida, mas geralmente ricas em significado. São os adágios ou provérbios, do domínio de determinado grupo social. Um deles sentencia que “Deus quando tira os dentes alarga a goela”. Foi mais ou menos o que aconteceu comigo. Em momento algum tive a solidão como única companheira. Deus me dera amigos para compensar os poucos familiares em condições de me cuidar. Dei muito trabalho para meus amigos. Minha esposa raramente se afastava do meu lado, e quando era imperioso ausentar-se, deixava sua mãe me cuidando. Por vezes ficava também minha mãe, que já doente, não podia fazer muito mais que orar. E como suas orações foram ouvidas!
Nos primeiros dias após o acidente fiquei enfaixado, parecendo mais uma múmia. No meu âmago eu também me sentia assim. Esqueci de dizer que meu maxilar inferior fraturou em oito pedaços. A equipe médica que me socorreu, conseguiu “acolherá-los” com fio de aço e fixá-los no lugar. O conjunto foi amarrado com o mesmo fio ao maxilar superior. Por sorte este estava íntegro. Mas o osso malar ou zigomático sofrera afundamento. Na plástica me recuperaram o dito cujo. Minha cara estava de tal maneira deformada que meu incansável amigo de Cacequi, agora brilhante médico, não me reconheceu. Ao sair da sala cirúrgica, no corredor, deparou com Minha Regina em prantos. Quis saber o motivo. Quando ela lhe disse que o acidentado era o Rapa-do-Tacho, ele ficou perplexo, por não ter me identificado. Saudoso amigo que deve estar sendo muito útil no nível espiritual a que a Inteligência Universal o guindou. Doutor José Hamiltom Acosta exerceu a medicina como um sacerdócio. Deus o tenha.
Remendado daquela maneira e com as mandíbulas imobilizadas passei a ser alimentado por sonda nasogástrica. Concomitantemente, fizeram uma traqueostomia, um buraco em minha traquéia, por onde introduziram uma cânula de aço inox para drenar secreções e resíduos gástricos. Esse procedimento me protegeria de contrair uma pneumonia. Suportei-o por cerca de seis meses! Com o tempo até conseguia articular algumas palavras, bastando ocluir o orifício externo da cânula com o dedo. Eu me comunicava por fonemas bilabiais e linguodentais. A cânula acabou por deixar muito delgado o epitélio da minha traquéia. Sinto as conseqüências até hoje, com as mudanças no clima ou com a poluição do ar. A alimentação era através de uma sonda que passava num vão criado pela retirada de um dente da arcada superior. Submetido a regime compulsório de alimentação líquida, despenquei dezessete quilos. Só fui recuperá-los depois de graduado em farmácia, à custa de churrasco de chibo uruguayo. Entonces obtive a comprovação do ditado popular. No lugar dos dentes perdidos a gengiva enrijeceu e o esôfago ficou mais calibroso, para compensar. Quando o inchaço diminuiu, as faixas e ataduras cederam lugar ao gesso. Capacete e mangas de gesso deixaram-me com aspecto de astronauta. Fazia o maior sucesso na rua. Foi o verão mais escaldante de que me recordo. A par desse desconforto deveria enfrentar 72 degraus para chegar ao nosso apê, no quarto andar. Alguns meses depois é que mudaríamos para o chalé com pomar, de que guardo belos recuerdos e dos quais me ocuparei a seguir.
Antes, porém, cumpre-me registrar mais um infortúnio. O falecimento prematuro de meu cunhado, com apenas dezessete anos. Vítima de possível edema cerebral agudo. O menino, irmão mais moço de minha esposa, não teve a mesma sorte que eu. Quando apresentou os primeiros sinais, na primeira hora da tarde, foi internado no hospital e chamado o médico neurologista por reiteradas vezes. Quando por fim apareceu já era tarde. Foi fulminante. Ficou cianótico. Estive sempre à sua cabeceira. Éramos muito amigos. Conversávamos sobre o vestibular que nos próximos dias ele faria para a faculdade de Engenharia. Tive que me afastar para ir atrás do médico do qual me desencontrei. Quando retornei, o desatento e desumano profissional estava ao lado do menino, já sem vida. Atestou “tétano”, como a causa da morte. Discutimos. Lembrei-o que os sinais de tétano me eram conhecidos, vez que por vários anos eu trabalhara com soros e vacinas contra as toxinas da bactéria causadora do mal. Além do mais se tivesse sido pronta e oportunamente socorrido ele não necessitaria inventar diagnóstico. Os demais familiares não fizeram muita carga e, infelizmente, mais um caso de negligência médica e omissão de socorro, acabava de vitimar um inocente. E ficou por isso mesmo. Impune. Enfim, hoje creio que chegara a hora do menino. Enquanto eu, pecador, me restabelecia. Graças à competência, seriedade e honestidade profissional de um médico que sequer identificara o seu paciente. A máxima Cristã “fazer o bem sem olhar a quem” tinha sido praticada à risca.
2 comentários:
Bah... Excelente! Ótimo arremate.
Eu gosto de memórias...estudo elas...e como aprendo ao ler o passado vivido por alguém tão próximo. Gracias por escrever-las!
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