terça-feira, 3 de novembro de 2009

COM OS PÉS NO CHÃO

A Natureza é mesmo esplendorosa em todas as suas manifestações. Como a capacidade humana para percebê-las é individual, limitada e circunstancial, na maioria das vezes podem parecer-nos manifestações do acaso. Não entro na fileira dos que apresentam o acaso como bode expiatório para eventual situação desfavorável. Necessariamente teria que admitir que uma situação favorável, também seria fruto acidental. E minha consciência, burilada por quase seis décadas, como se comportaria? Forçoso me é reportar à idade de sete anos quando recebi a enxadinha com cabo de guajuvira. Era um regalo impregnado de segundas intenções. De primeiras intenções também, tanto que até me alegrou. Um tipo de alegria só experimentado por quem fora guri nas circunstâncias da época. Não será necessário identificar as segundas intenções, por óbvio, creio.

Certamente que era a maneira de iniciar os pequenos humanos nas lides que lhe iam assegurar a subsistência futura e de sua descendência, garantindo a perpetuação da espécie. Esse costume vinha de tempos primevos, quando os ancestrais sentiram escassez de frutos, pesca e caça. Era a Natureza, paulatina e sutil com suas leis, preparando o homem para conviver harmoniosamente com a mãe terra. Claro que em dado momento a população aumentou e com ela o consumo. Foi necessário produzir mais. Surgiram a ganância e a concorrência desleal; e os homens começaram a se desentender. Assim visto não me parece obra do acaso. Entendo como conseqüência. Mas esta por si só não existe. Ela “é” ou “existe” por ou perante a Causa. É a lei de Causa-Conseqüência ou Causa-efeito. Lei Maior Cósmica que rege todas as demais que disciplinam o macro e o microcosmo.

Minha família era um pequeno mundo onde cada um de nós teria de interagir com os outros dois, buscando assegurar a harmonia e o bem estar do todo. Muitas noites de insônia, preocupados com o futuro na nova moradia. A sorte fora lançada. A transferência do alto apartamento para a casa térrea foi finalmente realizada, rodeada de muitas controvérsias. O apê era mais seguro contra criminosos, mas inseguro para o menino, naquela idade. Ele tinha já aprontado para sua mãe que milagrosamente o segurou pelos pezinhos, tendo metade do corpo pra fora da sacada do quarto andar! Nessa época ela já acusava os efeitos da deficiência auditiva, decorrente da severa, e já referida, antibioticoterapia. A casa não apresentaria esse problema. Outros talvez. O tempo mostrou mais acertos em nossa decisão. Não era nem arremedo de chalé suíço, mas nos acolheu e agasalhou por cerca de cinco belos anos. Fará por merecer uma descrição mais demorada, brevemente. Por oportuno, lembrarei que eu continuava com gesso no braço direito e parte do braço esquerdo. O capacete de gesso e as amarras nos “queixos” tinham sido removidos. Eu passava o tempo todo mascando goma para recuperar os movimentos mastigatórios. Até há pouco tempo, eu ainda surpreendia os menos avisados com o ruído dos maxilares se ajustando nos encaixes dos ossos crânio-cefálicos.

A despacito fui abolindo os acessórios corretivos. A cânula inox da traquéia foi removida mais tarde. Não afetou muito minha voz de taquara rachada. Também espero não ter que cantar mais nada nem ninguém. Ah! Afugentei alguns amigos com a “mudança pra pior”. Conservei alguns menos exigentes. Outros comentaram com seus pares que acreditavam ter eu “abilolado”. Conclusão a que chegaram ao me verem caminhando meio “derreado”, mascando chiclete e massageando uma bolinha de tênis. Por sinal, esta ficou mais careca do que estou agora. Tinha deixado desenvolver uma barbicha que lembrava o Salsicha, companheiro do Scooby-Doo.

Um comentário:

Pauta Cifrada disse...

ahahahahaha... sensacional!