sábado, 31 de outubro de 2009

AH, OS AMIGOS!


Durante o período mais crítico de recuperação do acidente sofrido estive sempre rodeado de amigos. Entre eles estavam meus irmãos, cada um auxiliava como podia. Minha mãe, em que pese, seu reumatismo ter se agravado, não saía da igreja onde comparecia para agradecer ao Supremo e Onipotente Criador o milagre de ter me poupado a vida. Minha sogra, que em verdade, era outra mãe, se desdobrava atendendo sua casa e seu neto-filho, vez que Minha Regina ficava o tempo todo ao meu lado. Os colegas de profissão alternavam-se em visitas de verdadeira solidariedade. Alguns até cotizaram-se e compraram um aparelho portátil de TV. Para eu espairecer, diziam. Alguns menos próximos mantiveram-se indiferentes à minha sorte. Houve até algum que teria argumentado: “Não mandei se acidentar...” Meu amigo do Cacequi, mantinha seus colegas médicos e nossos demais amigos, sempre informados sobre minha recuperação. Até o antigo colega de caserna, agora estudante de medicina, aparecia para alegrar-me recordando as peripécias compartilhadas alguns anos antes. Toda essa demonstração de carinho e solidariedade não foi suficiente para acelerar a minha recuperação.

Em dado momento, induzido por parentes e amigos, preocupados com o que entendiam por negligência de determinado médico, decidi buscar assistência em Porto Alegre. Por cerca de um ano fiquei sendo remendado na Capital. Conhecia alguns médicos especialistas em fraturas, desde a época em que estagiara como propagandista, assessorando colegas da antiga empresa norte-americana. Fui avaliado e submetido a quatro cirurgias. Destas uma corretiva e três de enxerto ósseo no meu braço direito que custou muito a consolidar. Este fato tirou-me muitas noites de sono. Preocupado com a saúde e com a faculdade de farmácia para a qual eu retornara graças a insistência de outro antigo amigo e colega comensal da então Juventude Universitária Católica, JUC. Encontrei-me com esse amigo, agora já farmacêutico e alto funcionário da UFSM. Ficou impressionado com o meu caso e encorajou-me a voltar a estudar, aproveitando a mesma matrícula de 1966. A ela tinha eu direito pois não existia qualquer tipo de restrição. Não renovara e nem trancara a matrícula, justo no ano do acidente. Além do mais como membro do Egrégio Conselho Universitário, seria defensor da minha reintegração ao curso de Farmácia. Uma recomendação dele: Deveria eu concluir o curso durante os próximos quatro anos. Era decorrência da lei de concursos públicos. Também o vestibular tinha validade de dez anos. Ocorreu como ele previu.

Retornei à vida acadêmica farmacêutica. Não sem dificuldades. Havia decorrido cinco anos desde que eu ''dependurara as chuteiras” de estudante. Muita coisa mudara no ensino, inclusive, como conseqüência da badalada reforma do ensino universitário, durante a ditadura militar. Para ter condições de acompanhar as aulas, paralelamente, eu estudava matérias fundamentais que deveria ter visto no terceiro grau. Recordemos que eu cortei atalho pelo curso Madureza (artigo 99). Logo comecei a ver alguma razão na profecia do antigo professor Constantino Reis, para o qual eu não chegaria a universidade sem a matemática. Entretanto essa matéria jamais me nocauteou. As circunstâncias se alinham e fecham o cerco envolvendo o indômito Rapa-de-Tacho dos anos 50/60. A financeira FIN-HAB começa a fazer uma série de exigências para regularizar o financiamento do apê de que éramos promitentes-compradores. Do referido imóvel, orientado por advogado, já havia depositado em juízo, cerca de um quinto do valor total, mais ou menos dois anos de prestações. Nessas circunstâncias, com gesso e tudo o mais, assistia umas aulas de farmácia. Dependurava outras tantas quando tinha que ir fazer revisão médica em Porto Alegre.

E não dava tréguas a Financeira. Esta em determinado momento decidiu ,unilateralmente, cancelar o financiamento alegando que eu estaria em dificuldade financeira para honrar o contrato de compra do imóvel. Nós estávamos em dia com as parcelas. Recebia auxílio-doença do INPS (bons tempos da ditadura militar) e ainda contava com o dinheiro da venda do primeiro fusquinha, já referido. Acionei o advogado em defesa do patrimônio. Resultou que a financeira devolveu todas as parcelas pagas. Por força de uma cláusula contratual que determinava que em caso de desistência unilateral a outra parte receberia os valores pagos atualizados com juros e correção monetária. Somados esses, com o referido valor do fusquinha e um seguro de vida da União dos Caixeiros Viajantes, consegui comprar um chalé com terreno e árvores frutíferas, não muito distante do apê em questão. Mudamo-nos para essa casa que ficamos devendo uma parte do valor. Pagamos sem maiores sacrifícios em alguns meses. A tensão aliviou um pouco. A faculdade arrancava o meu couro. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre o exame de raios-X acusava fratura não consolidada. Na terceira cirurgia me foi retirado um naco da crista ilíaca e enxertado no rádio do braço direito.

A confiança na recuperação começava a cambalear, quando Minha Regina decidiu acionar os 'poderes sutis' de uma sua freguesa e amiga. Nessa época minha esposa vendia perfumes e cosméticos Christian Gray para aliviar nossas contas assoberbadas com as despesas de viagem a Porto Alegre, medicamentos, e a faculdade. Esta, gratuita. Mas livros, transporte e refeições corriam por nossa conta. A partir do momento em que comecei a beber suco de laranjas com cenoura ralada, receita dos “guias”, comecei a sentir a sensação de soldagem do último enxerto ósseo. Quando fui à consulta médica para nova revisão, o exame de raios-X confirmou que a fratura estava consolidada. Retornando à faculdade, sem o gesso, fui ovacionado. A maioria dos colegas havia rubricado minha manga de gesso, desejosos de sucesso, antes de eu viajar para a última revisão. Minhas dificuldades tinham aliviado. Os médicos Davi Gusmão e Paulo Eicheimberg me remendaram e incentivaram a concluir a faculdade. Os espíritos contribuíram decididamente em várias oportunidades. Estou em débito com todos eles. Ah! os amigos. Que a Inteligência Universal ilumine a todos, onde estejam.

PASSAPORTE SUSPENSO!

Não fora nessa e nem seria nas seguintes oportunidades durante os próximos trinta e nove anos que eu conseguiria o ''visto'' em meu passaporte para o outro nível de existência. Certamente deveria existir um motivo para que aos vinte e oito anos, ainda incompletos, me fosse denegada a passagem para o “outro mundo”. Disso eu já sabia, mas não compreendia naqueles áridos dias de novembro de 1970. Acontece que no livro conta-corrente cármico de minhas existências constava, e certamente ainda consta, uma página com a coluna débito com pendências irrevogáveis. Estas pendências ser-me-ão cobradas até o último centavo. Hoje eu sei e compreendo o significado inflexível da Lei de Causa e Efeito. ''Devo, não nego! Pagarei quando puder." Resta-me tentar buscar um entendimento com a Suprema Inteligência Universal no sentido de que minhas dívidas me sejam cobradas parcimoniosamente. Como, de resto, creio vem ocorrendo nesta encarnação. Pois das outras vidas passadas não me é dado perscrutar no atual patamar de sabedoria que penso dominar. O Proto-Mártir do Cristianismo costumava ensinar: "A casa de Meu Pai tem muitas moradas". Tentarei continuar lutando com coragem, temperança, persistência e resignação para poder merecer habitar uma dessas moradas; em cada uma das muitas vezes que, imagino, ainda necessitarei incursionar, na busca do aperfeiçoamento.

Após tantos anos passados do infausto acidente, ainda me questiono de onde tirei eu condições psíquicas para administrar a existência de minha pequena família. Nunca fui modelo de serenidade. Já disse, sou temente a Deus. Certamente vertem daí todos os recursos de que tenho me servido para manter o barco da vida singrando os tenebrosos e encapelados mares desta existência. Não entrarei em detalhes decorrentes de atos profissionais médicos a que fui submetido. Creio que todos os profissionais obraram profissional e conscientemente, como lídimos juramentados de Hipócrates e sacerdotes de Esculápio(ou Asclépio). Forçoso é recordar que o acidente ocorreu ao anoitecer do dia oito de novembro. No dia onze pela manhã, paulatinamente, eu adquiria a noção da dimensão do estrago que este “bloco de barro” organizado havia sofrido. Ouviria muitas sentenças do tipo “não era a hora...”, '”o que é ruim não morre...”, ou “escapou por milagre...” Todas, a seu modo, com um pouco de razão. Não sei se por caridade ou por qual outro sentimento, não recordo de ter ouvido dizerem que meu passaporte fora suspenso devido ao fato de estar eu endividado e ter assumido o compromisso de resgatar minhas pendências, ainda nesta viagem. Eu chegaria a esta conclusão bem mais tarde.

Fato é que entre cirurgias de emergência e corretivas, alternadas com sessões de fisioterapia e mangas de gesso, haste de aço sustentando o antebraço direito e fios de aço amarrando os maxilares acarretaram-me novos hábitos alimentares. Passei noventa dias bebendo as famosas vitaminas. Pois falar em “batida” deste ou daquele fruto ou alimento era falta de consideração para quem tomara uma ''batida'' de automóvel e agora estava ali, que nem o Ciborg - O homem de cem milhões de dólares. Com a graça Divina aos poucos fui juntando os pedaços e tentando a reconstrução da minha vida e da minha pequena família. Não esmoreci em momento algum. Minha esposa e filho eram meus maiores incentivadores. Pela manhã, às vezes, deixava-me ficar na cama e fingia estar dormindo. Aí vinha meu filho passar a mãozinha no meu rosto e abrir minhas pálpebras com seus dedinhos rechonchudos ao mesmo tempo em que recomendava para eu levantar para “fazê zicício”. Referia-se ele às provas de fisioterapia a que eu devia submeter-me para tentar recuperar os movimentos.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CAUTELA E CALDO DE GALINHA

A existência afigurava-se na segunda metade dos anos 60 como uma seqüência de fatos totalmente previsíveis. As marcas de infância pobre e humilde pareciam ter se dissolvido numa adolescência carregada de promessas e de realizações bem sucedidas. Realizações essas que nos anos 60 eu interpretava como resultantes necessárias e obrigatórias do meu esforço e dedicação. E assim deveria ser com todos aqueles que lutam com pertinácia. Não faltavam “oráculos a vaticinar” o futuro brilhante e seguro de um jovem cuja existência “notaram” aos treze anos. Esses mesmos profetas, anos depois, jactar-se-iam de terem “previsto” meu suposto sucesso, com vários anos de antecedência. Não mais que um quarto de século havia decorrido e já eu estava desejoso de reencontrar esses amigos arautos para deles cobrar o complemento do vaticínio que fizeram em relação a mim.

Desde menino sou temente a Deus. Freqüentei a igreja por quatro décadas. "Orai e vigiai" é uma máxima legada pelo Proto-mártir da Cristandade, que a cunhou e recomendou aos seus discípulos mais diletos. É o que consta nos anais da história Cristã. Não recordo de ter ouvido a dissecação de tais palavras. Certamente que me foram explicadas. Mas o foram em momentos em que eu não estava ''aceso''. De maneira que fui ocupar-me das mesmas, só bem mais tarde, quando meu espírito decerto mais atilado, me induziu a revisão. Parece que toda a vida humana gira em torno da observação incondicional da ordem do Divino Mestre. Não basta orar, tem que fazê-lo com fé. Não basta trabalhar desordenadamente. Neste caso o fruto será duvidoso ou de má qualidade. O fotógrafo consciente busca sempre o melhor foco para manifestar sua arte. De todos os predicados a mim dirigidos, ''batalhador'' se me afigura como o menos injusto. Não me posso queixar da inteligência, posto que conclui tê-la em nível suficiente para mostrar-me situações importantes que outrora não me ocorrera. E o simples fato de eu detectar a limitada inteligência que me balanceia, por si só, basta para legitimar minha classificação, como Homo Sapiens.

Vencidas essas necessárias divagações, retorno a focar minha memória no cenário em que minha novel família se inseria nos idos da década de 1960/70. Como seria de prever na nova empresa não tive grandes vantagens. A remuneração era semelhante a de outras tantas multinacionais. O diferencial corria por conta da comissão sobre as vendas. Com uma linha de produtos bem mais modesta teria eu que vender mais para mais ganhar. O departamento de propaganda dessa firma não se comparava ao da antiga por mim rejeitada. O ambiente de trabalho era tão bom quanto. Exigência de cobertura de cotas era comum em todas. Prêmios por objetivos atingidos eram conquistados vez que outra. Setores bem menores deixavam uma margem para maior convívio com a família. Mas os ganhos iriam diminuir agora que a empresa decidira finalmente dotar o meu setor com carro. Com isso o ganho adicional da quilometragem deixava de ocorrer. Como eu administraria aquela diferença? Agora que era casado e tinha um rebento para criar. O fusquinha, de propriedade, seria vendido. O dinheiro seria aplicado na poupança para auxiliar na prestação do apê com promessa de financiamento pelo BNH.

Outra opção era estudar a permuta, mais uma vez, por outra empresa, mas esta não era vista com muito entusiasmo. A última troca nos deixara escaldados. Empresas e empregos não faltavam. Volta e meia um ou outro amigo sondava a possibilidade de transferência. Respondia estar satisfeito e que teria enorme satisfação em trabalhar em sua empresa, se as circunstâncias se alinhassem favoravelmente. Dessa maneira, eu e Minha Regina íamos administrando, com alguma tranqüilidade, a nossa pequena família. Morávamos num apê de quarto andar, mas tínhamos os pés bem plantados no chão. Por essa época minha empresa apertou o cinto em alguns procedimentos. O vendedor-cobrador não poderia reter nenhum valor em seu poder. Todo o recebimento seria depositado ou feito um passe até o final do expediente bancário ou na abertura imediata no dia seguinte. Por vezes tinha que ir à casa do gerente do banco, fora do horário de expediente, para cumprir a determinação.

Certa vez ocorreu-me de enviar, juntamente com os relatórios de produção e de despesas, um montante em moeda corrente com valor declarado, pelo transporte rodoviário (transportadora planalto). E aqui uma grande incógnita: os relatórios e o dinheiro miúdo foram acusados normalmente. O dinheiro graúdo, alegação dos superiores, não estava no pacote criteriosamente fechado, amarrado, selado e declarado. Era fim-de-semana, véspera de feriadão, eu não podia ficar com valores em meu poder. Esse o motivo de buscar alternativas para cumprir a determinação. Expediente, aliás, já explorado outras vezes. Sempre tinham dado certo. Mas nessa vez os valores eram maiores. Resultado: o valor alegado como não recebido me foi debitado e cobrado em seis parcelas mensais que foram deduzidas de meu salário e comissões.

Com essa sobrecarga financeira começava também minha desestabilidade psíquica e emocional. Teria que estourar de algum modo. E aconteceu. Era costume reunir-me com o supervisor da firma, nos finais de semana, para prestar contas e projetar a semana seguinte. Numa dessas oportunidades o dito cujo não estava em sua casa na cidade. Encontrava-se em sua chácara beira-rio. Pra lá me dirigi, para a costumeira reunião. Junto foi Minha Regina. O rebento, mui agarrado com a avó, com ela ficou. Além de ser domingo, um dos familiares do supervisor estava de aniversário. Tinha churrasco. Tinha vinho Jaguari. Após a prestação de contas, comemoramos e “bebemoramos”. E aqui, certamente, faltaram cautela e caldo de galinha. Nunca fui um “alterocopista” de boa performance. Ainda hoje, este galo velho se faz “pealar” com quirela. Após as libações, com o sol encoberto e nuvens ameaçadoras, decidi retornar com Minha Regina para nosso filho e casa. O carro que eu tinha recebido da firma tinha mais máquina que meu antigo fusquinha. Era fusca também. Motor l.300. A bem da verdade, eu ainda não estava mui vaqueano na direção dele. Ao entrarmos na cidade, com o asfalto molhado, eu tentava ultrapassar uma camionete DKW. Esta acelerou e resistiu minha ultrapassagem. Em sentido contrário vinha uma camionete GMC Chevrolet C-10. Na curva quando enxerguei a GMC, freei e reduzi a marcha, com a intenção de entrar atrás da DKW. Meu fusca derrapou no asfalto molhado, atravessou e a metade traseira esquerda foi batida pelo pára-choque dianteiro da GMC. A porta se abriu e fui arremessado para fora, indo cair no meio dos cascalhos do acostamento. Perdi a consciência. Recuperei-a quando estava adentrando o hospital. Eu estava literalmente demolido. Poli-fraturado. Dois braços e um cotovelo despedaçados. Fraturas em toda a face. Tinha caído de “focinho” no acostamento. O fêmur esquerdo não fraturou. Só rachou. A articulação óssea do cotovelo esquerdo triturou. Ainda na entrada do hospital eu enfiava a mão direita na manga do paletó e tirava o que eu pensava serem pedras de cascalho e jogava fora. Mais tarde meu amigo lá de Cacequi, agora médico, após ter-me socorrido, disse que as “pedrinhas” que eu dispensara eram pedaços de ossos de meu cotovelo e braço esquerdo, que poderiam ter sido reconstituídos. Mais uma desastrosa conseqüência da falta de prudência. Vale dizer, naquele domingo, oito de novembro de 1970, não tive cautela e nem tomei caldo de galinha. Milagrosamente, Minha Regina não sofreu um só arranhão. O pecador fora eu. Sobre eu deveria recair o castigo. Mas claro, ela teria que ajudar na reconstrução do que restara. E como ajudou. Segurou e segura nas pontas, sem chiar. Não bebeu e não bebe bebida alcoólica alguma. Por princípio e por prudência me trás com rédeas curtas hoje. Mais adiante direi como esse acidente redirecionou minha, e talvez nossas vidas.

sábado, 10 de outubro de 2009

RONCO E A POLVADEIRA NAS ESTRADAS

Mais ou menos na época do nascimento de nosso filho, recebemos uma visita inusitada. Estávamos em casa de meus sogros quando lá se apresentou um ex-companheiro de trabalho, que fora promovido a supervisor na empresa de que me demitira havia pouco tempo. Quando cheguei do trabalho, ele já se encontrava lá. Conversara detidamente com Minha Regina e sua mãe, minha sogra. O objetivo de sua visita era me levar de volta para sua firma que estava tendo dificuldades para preencher o lugar que eu deixara vago. Estavam dispostos a atender minhas reivindicações. Fiz-lhe ver que agora era tarde, pois além de eu já dispor de carro, já estava ambientado na nova empresa onde era prestigiado. Também o fato de minha senhora estar prestes a dar-me um herdeiro pesava. Afinal não era um bom momento para mudanças radicais. Hoje passados tantos anos, confesso, foi uma decisão muito corajosa. Só Deus o sabe. Era uma bela empresa. Em todos os sentidos. Ademais, entre minhas muitas preocupações, estava o porvir da nova família. Mais uma vez, a sorte fora lançada. Agradeci a oportunidade que me ofereciam. Sentia-me valorizado e lisonjeado. Decididamente não retornaria nem com a mediação da esposa e da sogra. Queridas!

Aos poucos a “polvadeira” se ia dissipando. Ah! Essa expressão trouxe-me à memória um episódio muito gratificante. Vou rememorar. Viajava, certa vez, em meu fusquinha da cidade de Caçapava do sul, onde acabara de trabalhar. Destinava-me à cidade vizinha, São Sepé, deixando densa “polvadeira” na estrada sem asfalto. No meio do percurso, na altura da localidade conhecida como Cerrito do Ouro, percebi um aceno. Reduzi a marcha e vi um vulto de porte físico avantajado em relação a mim, em pé, na beira da ''carreteira''. Trajando bombachas, jaqueta e chapéu aba larga cobertos de pó. Não lhe observei as botas que deveriam estar nas mesmas condições. Baixei o vidro, cumprimentou-me e perguntou se não seria incômodo dar-lhe carona até a cidade. Estava com doença em casa. Perdera o ônibus para ir buscar socorro. Seguimos. Lá pelas tantas me disse que era a segunda vez que eu salvava seu “pelego”.

- Mas como? retruquei questionando. Então indagou se eu não era o Rapa-de-tacho, enfermeiro no III BCCL, da turma de 1942.

- Sim, vivenciei isso tudo. E daí?

Tirou o chapéu, que devia ter quase uns três palmos de diâmetro, somando copa e aba. Com a barba por fazer, ainda me era desconhecido. Apontou uma “bonita” cicatriz no supercílio direito e completou.

- O senhor fez um serviço que nem médico faria melhor.

Aí me caiu a ficha. Parei o carro, nos cumprimentamos como velhos e muito bons amigos. Ele disse que o ferimento tinha sido em uma briga. Na época inventou a queda no banheiro para esquivar-se da cadeia e não retardar sua baixa. Respondi que imaginara ser resultado de briga, e minha função como enfermeiro era fazer-lhe o curativo. Continuou me tratando por “senhor”, embora eu o dispensasse de tal.

- Negativo! Sempre que me encontrasse eu seria o “senhor” que o salvara duas vezes, respondeu. Chegamos a São Sepé. Deixei-o no hospital. Despedimo-nos efusivamente. Tornou a agradecer-me. Disse que morava bem próximo de onde eu o apanhara e que chegasse para um amargo, numa passagem por ali. Não lembrei seu nome e constrangido, esqueci de perguntar-lhe na oportunidade. Nunca mais nos tornamos a encontrar. A “moral” do fato deve nos reportar ao ditado popular: "Quem surra esquece, quem apanha lembra." Construtivas lições de respeito e consideração que nossa sociedade contemporânea perdeu na “polvadeira” da dita “evolução”. Não há mais respeito e consideração como “antanho”.

Outro episódio envolvendo consideração e estima. Desta vez a falta de um acabou por revelar a inexistência do outro atributo. Acabara de trabalhar na bela, hospitaleira e quente Uruguaiana. Primeira e única cidade projetada e instalada durante o decênio da Revolução Farroupilha pelo general Bento Gonçalves da Silva, então presidente de nosso amado Rio grande de São Pedro. Uma sexta-feira. Encerrara cedo a conta no hotel. O carro estava pronto. Esperara até próximo das vinte e uma horas para cobrar um cliente “carretão”. Tão logo recebi, acelerei o “cascudinho” e tomei a estrada para Santa Maria, distante 405 quilômetros dali. Ao passar em Alegrete, depois de percorrer cerca de 150 quilômetros, resolvi tomar um lanche. Não costumo jantar. Fui a lancheria da estação rodoviária, na época, moderna, recentemente inaugurada. Lá estavam dois colegas e “amigos”. Jantavam, enquanto esperavam o ônibus que saíra de Uruguaiana, quase junto comigo. Terminava meu lanche quando o ônibus encostou. Os dois “muy amigos” se escalaram como caronas, para viajar comigo. Tudo bem. Afinal faltavam duzentos e tantos quilômetros a serem vencidos até nossa cidade. E a companhia de dois “pesos-pesados” não podia ser desprezada. Ainda mais numa noite gelada naquela estrada deserta.

Os ditos-cujos acabaram de jantar. Pegaram mais uma botelha de Velho Capitão. Colocaram suas bagagens no meu fusquinha, acomodamo-nos e zarpamos. Na estrada, liquidaram com o “velho oficial marujo”. Adormeceram e roncaram estrepitosamente. Não me incomodei. Seus roncos até me mantinham acordado. Sempre senti muito sono ao dirigir, especialmente em longas distâncias. Lá pelas tantas, já à vista das luzes de São Francisco de Assis, estourou um pneu da roda esquerda traseira do fusquinha e teria que ser substituído. Chamei os dois companheiros roncadores. Sequer mudaram o ritmo dos roncos. Macaqueei o carro e troquei o pneu, com o peso extra dos dois brutamontes e suas bagagens dentro. Passei no borracheiro, para consertar a câmara e retomei a viagem com os dois marmanjões sempre roncando. E veja bem, os dois juntos deveriam fazer três Rapa de tacho. Ou quase três. Dali rodamos mais uns 170 quilômetros e chegamos na nossa cidade. Deixei-os cada um em sua casa. Eram aproximadas quatro horas quando cheguei no meu apartamento, para beijar Minha Regina e nosso rebento. Dias depois eu os reencontrei. Denunciei o episódio. Ainda acusaram-me de não os ter chamado insistentemente. Alegaram ter sono “muito pesado”. Aí entendi. Fora o tal “excesso de peso” que fez rebentar o pneumático. Pode uma coisa dessas?

BECO SEM SAÍDA

Não havia decorrido, ainda, um mês desde que trocara de empresa. Se não estava indo tudo a contento, também não me podia queixar de nada. Afinal minha família aumentara. Minha Regina providenciara na perpetuação de nossas famílias. Foi uma gravidez perfeita, sem nenhum registro de anormalidade. O médico, competente e ainda hoje, famoso Ginecologista-Obstetra, membro da Sociedade Brasileira de Fertilidade e Reprodução, que a acompanhara no pré-natal; estava convencido de que tudo correria como esperado. Estava atento. Mesmo assim, deveria ser contatado ao menor sinal. Na tarde-noite, véspera do duo-centésimo septuagésimo dia de “prenhez”, um domingo, Minha Regina começou a sentir as primeiras fisgadas. E não cederam mais. Assustamo-nos. Buscamos a Maternidade. Ela entrara em trabalho de parto. Buscou-se o médico assistente dela. Não se encontrava na cidade. Veio o médico de plantão, que após infrutíferas e traumatizantes tentativas, revelou inépcia para aquele “mister”.

Pela madrugada, decidi ir atrás do médico assistente que ainda não viera de sua fazenda, nas proximidades da cidade. Encontrei-o na saída de sua propriedade. Tocamos para a maternidade. Tempos depois ele afirmaria nunca ter visto um fusquinha correr tanto. Uma cesariana seria a solução de menor risco para os dois, já muito traumatizados devido os esforços durante a noite. Ouvi o berro do tourinho ainda em perigo. A seguir vi a enfermeira passar com um volume embrulhado em tecidos brancos ensangüentados. De “relancina”, vi o “garrão”' exposto, do rebento em apuros, e conclui que era um “culhudo”, que fora receber oxigênio. Os trabalhos de parto demoraram muito e ele ficou cianótico. Vale dizer que meu amado filho já nasceu gremista. Ele permaneceu uns dias na tenda de oxigênio, até se recuperar. Enquanto isso sua Regina-mãe, lenta e sofridamente, mal recobrando a consciência, aos prantos, indagava onde estava seu filho Marcelo. O médico lhe respondeu questionando: Como sabia ela que era um menino? Não sei a resposta, desse curto diálogo. Só a Inteligência Universal o sabe.

Fato é que esse não era o nome que havíamos combinado. Se fosse menina ela poria o nome. Se guri, chamar-se-ia com outro nome em homenagem a um dos maiores vultos da história humana: Alexandre. Isto era devido aos pruridos de recalque que meu próprio nome ainda me causava. Para meu herdeiro não haveria esse desprazer, jamais. Acolhi tacitamente o belo nome. Inclusive para lhe fazer a vontade, pois a seguir o médico informaria que Minha Regina não passava bem. Tivera febre puerperal devido a infecção causada por contaminação bacteriana durante os inadequados trabalhos de parto. Por esse motivo ela ficaria internada, tratando a infecção hospitalar, várias semanas. Minha Regina passou muito mal. A antibioticoterapia lhe secou o leite e lesou o nervo auditivo. O “culhudinho” criar-se-ia “guacho”. E se criou muito bem Graças ao Bom Deus. Minha Regina ficou só “couro e osso”'. “Despacito”, com o inestimável esforço de sua mãe e demais familiares, se recuperaria. Anos depois, como acadêmico de farmácia, trocando idéias com professores e amigos bem informados, ficaríamos sabendo que nosso filho seria nosso único herdeiro. Devido à infecção generalizada do peritônio e cavidade abdominal, comprometendo os respectivos órgãos genésicos, não haveria mais condições de engravidar.

VIVENDO E APRENDENDO

Está tudo ali na minha velha e sebosa carteira de trabalho do antigo MTPS. “Saída” de uma multinacional norte-americana no dia 15 de setembro de 1968. No dia seguinte ”admissão” em outra, desta vez européia. Mais exatamente italiana, grupo Montecatini. Jamais tive provas, porém, as más línguas afirmavam que meu novo patrão representava uma modalidade de investimento do Banco Ambrosiano. Este faliu escandalosamente lá pela década de 1980. O mesmo banco teria recursos aplicados no grupo alemão Krupp, de armamentos. Este segmento também teria na década de 1970, fabricado armas no Brasil. Ao fim e ao cabo, esses tentáculos seriam movidos com recursos financeiros oriundos da Santa Sé, via grupo Montecatini e suas extensões. Como pode-se inferir, por essa época, os recursos adquiridos por meio de obras de caridade eram aplicados em armamentos e anticonceptivos. Dois ramos de atividade opostos. Aí eu entro. Pois meu novo patrão pertencia àquele conglomerado internacional.

Fui criticado por uns amigos e aprovado por outros. Fato é que o novo patrão não tinha carro pra mim. Fora astúcia do meu, agora supervisor. Comprando meu passe, ele neutralizava um bom concorrente e o trazia para sua empresa e equipe que agora poderia contar com a qualificada propaganda médica que eu realizava. Porém, o supervisor demonstrou não faltar com sua palavra. Alguns dias depois de admitido na nova firma, acompanhou-me a uma revenda Volkswagem, em Santa Maria escolheu e sugeriu-me um “fuquinha” usado, mas em excelente estado, com baixa quilometragem. Usei uma reserva financeira na “entrada”. O restante seria financiado. O carro pagar-se-ia sozinho, pois eu receberia por quilômetro rodado.

E assim foi efetivamente. Atirei-me com corpo e alma ao trabalho. Minha família aumentara. Prestação de “apê” e agora mais o “pé de borracha”. A manobra fora tão bem planejada pelo meu amigo que ele assumiu como fiador das prestações restantes. Estava tudo arrumado para funcionar. Trabalhava com afinco como sempre. O compromisso adicional representado pela aquisição do carro não tinha sido totalmente digerido. Já na primeira aula na auto-escola, meu instrutor, não eu, daria uma batida com meu carro. Isto que era ”profissional”', desempregado de uma empresa de ônibus. Mas era “profissional”. Seria por “barbeiro” que não estava empregado? Não fiquei sabendo. Certo é que tive que enfiar a mão no bolso para pagar um erro que não cometera. Decidi, arriscar. Doravante pagaria por próprio erro meu. Não dos outros. E assim seria. Dei várias pequenas “bangornadas”, até conseguir a carteira de habilitação. E mesmo depois. A propósito da carteira de habilitação, fiz o exame de direção no DETRAN, em Porto Alegre. O examinador verificando meu comportamento, depois de autorizar algumas manobras, entre elas, parar e buzinar na frente de um hospital. Finalmente, mandou que estacionasse na frente do Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga, na Capital.

Questionou se eu necessitava muito da carteira.

- O senhor está muito nervoso, ou não estudou o suficiente? Cometeu uma série de infrações perigosas. Próprias de “barbeiros”.

Admiti que além de um pouco inexperiente eu estava nervoso, pois da carteira dependia meu emprego. Silenciou um pouco. Não me pediu “incentivo pecuniário” algum. Sisudo, informou-me:

-Vou encaminhar sua carteira para o visto. E completou:

-O senhor não está pronto, Se continuar a cometer essas falhas poderá por em risco até a própria vida. Sábias e experientes palavras que muito tempo depois, e por várias oportunidades recordar-me-ia. Consoante veremos mais adiante.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

VALORIZAÇÃO EM ALTA

Deus escreve certo por linhas tortas. Quantas vezes já ouvimos esse conhecido ditado popular e não lhe prestamos a devida atenção? Pois assim sucedeu comigo nos primeiros dias após a aventura da noite passada dentro de um “fuca-pé-de-boi”, por solidariedade ou companheirismo ao colega viajante. Pagara um “mico”, repetiria algumas vezes, concordando com algum outro colega que não tivera experiência semelhante. Com o tempo, esquecemos as coisas pequenas ou sem maior importância, pois aquele não fora um acontecimento sem importância; pelo menos para o companheiro viajante vendedor, como eu. Tinha ele, em seu catálogo um produto diretamente concorrente de um que eu vendia. E vendia bem. Eu fazia uma propaganda “científica”. Era razoável vendedor. Não um ''atochador''. Tinha cara “firme”, de cobrador. Embora casado recentemente, eu percorria todo o território, religiosamente. Por vezes ficava ausente por até doze dias. Depois que adquiri carro, esse período caiu para não mais que uma semana. Passei a ser bem visto por outros colegas e até por supervisores de outros laboratórios. De quando em vez uma sondada:

- Não estava cansado daquela rotina tão longa? Não gostaria de trabalhar numa firma que desse carro? Seduziam.

No início respondia estar plenamente satisfeito. O ambiente em minha empresa era deveras bom. Eu sentia-me prestigiado. Único desgosto: Eu não tinha carro! Também não era tão ruim assim. Fora bem pior na década anterior. Normalmente viajava durante três semanas e ficava o restante do mês trabalhando em Santa Maria, junto de minha esposa e o futuro rebento. Ficamos morando juntos com “os sogros” até nosso menino nascer. Depois mudamos pra o novo “apê”, que finalmente recebera o habite-se.

Estava tudo correndo a contento. Minha firma tinha feito uma reestruturação nos setores de venda. Suprimira algumas cidades com poucos médicos. Eu ficara prejudicado. Muitas cidades pequenas, entre elas, minha inesquecível Cacequi, não mais seriam trabalhadas. Não gostei. Datilografei um longo e estribado relatório mostrando que aquele equívoco me traria muito prejuízo. Eu vendia bem nas cidades pequenas onde o investimento era menor. Nas cidades maiores tinham mais médicos, mais farmácias. Aumentavam as despesas de toda ordem, inclusive com hospedagem e amostras para os médicos. Não fui ouvido. Era ordem superior. Não tinha volta. Passou. Coincidência ou não, por esses dias, um viajante que há algum tempo, me havia sondado, tornou a me “cutucar”'. Desta vez acenou com um carro. Mostrou-me o olerite de seu último salário e comissões. Era convincente. Quanto ao carro, eram favas contadas, dizia. Se a firma não tivesse carro disponível pra mim, compraríamos um e cobraríamos por km rodado, até a firma conseguir o carro. E garantiu: Sem carro eu não ficaria nem mais um dia.

Era véspera de ir a reunião em porto alegre. Falei-lhe da mesma e prometi que se minha atual firma não revisasse suas decisões, eu me transferiria para a sua e ficaria no seu lugar. Pois ele fora promovido a supervisor. Viajamos juntos para a capital. Apresentei-me na minha, ainda, empresa, já “picado pela mutuca”. Alguns colegas mais velhos tinham sido despedidos. Mais cortes viriam. Começada a reunião, um alto funcionário internacional, apresentou as novidades. Falava muito mal. Em péssimo “portunhol”. Ambiente pesado. Colocou a palavra a nossa disposição. Ninguém se manifestando. Solicitei a palavra e permissão para falar em pé. Manifestei minha tristeza pelas mudanças. Já sentia o resultado nas minhas vendas. Todos sentiriam. Meu setor era o único que não tinha carro. Mesmo assim estava com resultados satisfatórios. E agora com mais aqueles colegas dispensados. O que eu, recém-casado, poderia esperar? Insegurança eu não podia aceitar pra minha família. Sendo assim, eu inclinava-me, a acolher o convite de outra empresa que parecia valorizar mais meu trabalho. E solicitei dessem saída em minha carteira naquele mesmo dia. O amigo gerente mostrou-se desapontado. Dizia que eu não tinha motivo para tomar aquela atitude. Tornei a alegar insegurança. E o carro prometido e não recebido. Não tinha retorno. Já pedira desligamento. Passaria à tarde para acertar as contas e buscar a carteira de trabalho liberada. Pedi permissão para retirar-me e fui almoçar com o futuro supervisor que esperava em uma Lanchonete do centro da capital. No dia seguinte meu novo contrato seria anotado em minha carteira profissional.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

ADEUS AOS ANOS DOURADOS

Com vinte e cinco anos e alguns meses de existência, de alguma maneira, eu já me achava um tanto amadurecido. Não que estivesse velho. Na verdade ninguém se sente velho nessa tenra idade, mas em algum momento de minha ainda curta existência tinha eu perdido a noção da mocidade adolescente dos últimos dez anos. Tinha dissipado meus mais dourados anos, intensamente, trabalhando e estudando. Havia desfrutado de um período de férias, quando eram de 20 dias, ainda. Das outras, sempre vendera a metade para fazer caixa. Vivia com parcimônia e austeridade. Tinha adquirido um apartamento na planta, financiado pelo BNH. Pagara a entrada e estava pagando as parcelas mensais regularmente. Não demoraria muito a tomar posse do mesmo. No trabalho era prestigiado. Tido como um dos melhores vendedores-propagandistas da empresa, que havia pouco concedera aumento salarial para a categoria. Já havia prestado concurso público para a EBCT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, mas não tomei conhecimento do resultado. No concurso da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, fui classificado e nunca me chamaram, para a função de chefe de portaria! Em 1963, realizara curso intensivo, na Base Aérea de Canoas, para Oficial da Reserva da Aeronáutica. Fora reprovado no “psicoteste”. Inscrevera-me para integrar o então Batalhão de Suez, que guarnecia a temerária Faixa de Gaza, no Oriente Médio. Fui “nocauteado” pela insuficiente altura física. Na retrospecção desses resultados conclui ser o ramo de medicamentos o meu chão. A ele agarrar-me-ia com unhas e dentes. A noiva já esperava “pacientemente” há cinco longos anos. A faculdade de farmácia, ainda seria preterida em favor da rentável profissão de vendedor por mais algum tempo. Estava tudo sob controle. Não haveria mais reveses. Mobiliamos um apartamento, alugado, até que recebêssemos o nosso próprio. Casamos de “papel passado”, no Civil. O “Religioso” foi na Catedral de Santa Maria, cercado pelas paredes cobertas por belas pinturas do italiano Aldo Locatelli. Meus amigos e, agora, testemunhas de “enforcamento” prestigiaram-nos. Sem aprontar qualquer caçoada. Admiráveis e inesquecíveis amigos. Outros estavam presentes, mas aqueles marcariam mais profundamente minha memória. Lamentavelmente meus testemunhas de casório já foram convocados para servir o Plano Espiritual. Até alguns anos passados vivia, o Alvino Candido Michelotti, ex parceiro de apartamento e brilhante professor na U.F.S.M., mais tarde doutorado em Lingua Portuguesa. Era casado com a também professora Alaide Canto Michelotti. Há muito não os vejo nem deles tenho notícia. Um velho amigo desde o Cacequi, Darci Madruga e sua filha Suzana também me prestigiaram. Ele há muito deixou este nível de existência. Ficaram as queridas Nena, sua viúva e a filha, minha testemunha, que às vezes revemos com muito carinho. Os inesquecíveis amigos e 'fratelos' de tantas 'jornadas' INDIO DA CUNHA PINTO e sua querida LEONIDA, também brilhante educadora santamariense. Ele, prematuramente, nos deixou, ficando sua querida 'NIDA' a quem vez que outra reverenciamos com nossa visita. O ANTONIO CARLOS MAZO MARTINS, o mais próximo dos amigos, pelo companheirismo desde o serviço militar, quando servimos juntos na mesma enfermaria regimental e vivenciamos o 'Bivaque' em Porto Alegre, antes da Legalidade. E também fomos parceiros no famoso "pombal"- pensão da dona Olga(final de 1961/início de 1962)- na rua doutor Bozano, frente do quartel dos Bombeiros, em cujo local hoje se eleva um arranhacéus. Mais tarde alugamos uma casa na rua Araujo Viana juntamente com o INDIO que também servira na mesma unidade militar,III B.C.C.L., já referido anteriormente. Dessa casa nos transferimos para um apê na rua do Acampamento,onde naqueles dias, seríamos vizinhos da 'Rádio Guaratã de Santa Maria'- do radialista Zapi- ainda muito jovens. Nesse apê se nos ajojou o Lopes, ex companheiro da mesma caserna, agora Sargento do Exército. Foi o último a integrar 'os mosqueteiros'. Também foi o primeiro a abandonar o quarteto, para casar-se. O próximo fui eu, pelo mesmo motivo. Restaram os saudosos amigos 'Carlão'(Carlos Mazo) e o ("grande cacique") Indio que seguiria nossos exemplos de 'homens sérios'. O Carlão, que junto com sua irmã Norma testemunhou meu 'enforcamento', formar-se-ia Médico e, após dois ou três anos de Residência em Cirurgia Médica, iria clinicar na cidade de Tupanciretã, onde seríamos contemporâneos durante alguns meses no Hospital Brasilina Terra. Ali respondi pelo Laboratório Clínico nosocomial logo que concluí o curso de Farmácia-Bioquímica. Foi nessa empreitada que arranjei dinheiro para enfrentar as despesas de "colação de grau" naquele já distante 03 de dezembro de 1.975. Esse amigo, brilhante e abnegado médico casaria, mais tarde, com Suzana Bheregary que fora minha colega na Farmácia-Bioquímica, turma de 1.975. De todos esses amigos guardamos, eu e minha prenda, as melhores recordações. As mulheres, felizmente, ainda vivem saudáveis. Os amigos, conforme relatei em outros capítulos, cumpriram seu tempo e foram chamados para o plano espiritual, deixando entre seus pares e amigos uma imensa mas carinhosa saudade.

Durante oito dias viveríamos nossa Lua de mel na linda Gramado- na serra gaúcha- e na gélida Lajes em Santa Catarina, em pleno mês de março de 1968. Creio que foi durante esses dias que, sem perceber, minha jovem esposa e eu estivemos a dar 'adeus aos anos dourados'. Retornamos e apliquei-me ao trabalho. Minha responsabilidade aumentara. Durante minhas ausências, nas viagens, minha jovem esposa ficava na casa de seus pais, um tanto distante de onde morávamos. Com o tempo, mudamos com “mala e cuia” pra junto deles, até nosso “apê” ser acabado. Minha “Regina”' ficara grávida de nosso único herdeiro, que agora já está criado e voando bem alto graças ao Bom Deus!. Dele espero poder montar “remembranças”, mais adiante.

Agora vou relatar os apuros de um viajante que aceitou uma carona, indevidamente. Retornava ele, que sou eu, de uma das reuniões já mencionadas, em Porto Alegre. Costumeiramente, viajando de ônibus. Parada em Cachoeira do Sul, para jantar. Terminado o mesmo, acomodei-me na poltrona e fiquei observando através da janela do coletivo. Momentos depois um amigo e colega de profissão entrou e me tirou do ônibus para viajar com ele para Santa Maria, alegando que não gostava de viajar sozinho durante a noite. Além do mais, dizia, o carro tinha “calefação” e chegaríamos bem antes do coletivo, em nosso destino comum. Não duvidei, e pra lá nos dirigimos, pela estrada molhada, esburacada e ainda sem asfalto. Faltando uns trinta quilômetros para chegarmos ao destino, o carro afundou em uma massa de água e barro existente na estrada onde estavam fazendo cortes para construir os “pegões” de uma ponte na, hoje, rodovia BR 287. Em instantes o carro encheu de água e lama. Tiramos nossas malas e bagagens para o mais alto que possível. Estávamos secando velas e outros componentes do motor do carro, que até dava sinais de reação. Nisso chega o ônibus referido. O motorista, gentilmente, nos ofereceu socorro. Agradecemos. Pois nosso ”fuca-pé-de-boi”' estava dando sinais que não nos deixaria na mão. O motorista do coletivo tocou embora. Entretanto o nosso 'veículo' não confirmou os sinais. Resultou que passamos a noite, desde as vinte horas até próximo das cinco da manhã seguinte, dentro do carro, com água e lama até os joelhos. Pela madrugada um caminhão bem ali próximo roncou o motor. Somente, então, nos “tocamos”!. Pedimos socorro. Ele nos rebocou até a cidade. Havíamos levado mais de doze horas para percorrer 130 km de Cachoeira do Sul até Santa Maria. O coletivo percorria em 2 horas e meia. Por Solidariedade com o companheiro paguei aquele “mico”. Por muitos anos não pegaria mais carona. Não demorei muito a ter meu próprio carro, um VW sedan 1962. Creio que até hoje tenho os pés enregelados, decorrência daquele banho de água e lama frios.

BEM EMPREGADO

Foi como num piscar de olhos. Eu estava dando uma guinada de 180 graus. Desligara-me da farmácia onde percebia modesto salário, que mal cobria minhas despesas pessoais, embora estivesse paralelamente cursando faculdade de Farmácia. Alguns dias depois estava contratado pelos Laboratórios Parke Davis Ltda. Uma versão brasileira da, então poderosa, multinacional Parke Davis Lab. Co, de Detroit, Michigan, USA. Passaria a ganhos, que incluindo salário, comissões e prêmios, superavam dez salários mínimos da época; mais todas as despesas de viagens pagas. Era uma dinheirama. Para ganhar tanto assim teria que produzir. Não tive dificuldade no treinamento. Era uma linha de produtos farmacêuticos, bem conhecida e respeitada. Teria que conquistar o receituário através de propaganda direta aos médicos, onde quer que estivessem. Nos consultórios particulares, hospitais ou clínicas. Depois era só passar nas farmácias, “conferir as receitas conquistadas” e tirar o pedido comercial.

A cobrança era feita via duplicata bancária. Em alguns casos raros, a cobrança era direta ou “em carteira”. Nesses casos, havia comissão de cobrança para o vendedor. E deu muito trabalho o controle das fichas de visitação médica, e do freguês. À noite, no hotel, realizava os relatórios diários de venda, cobranças e de despesas de viagem. Estes, por vezes, eram feitos durante os deslocamentos, quando em trens. De ônibus nem pensar! As estradas “carreteiras” sacolejavam muito. Deveria estudar constantemente os produtos do catálogo e bulário dos medicamentos, para adquirir base e argumentar junto aos médicos. Periodicamente eram feitas avaliações escritas sobre os produtos, especialmente quando comparecíamos à filial em Porto Alegre. Nessas ocasiões confraternizávamos com outros colegas do interior e da capital. O ambiente era deveras satisfatório. Gradativamente, ia esquecendo que fora acadêmico de Farmácia por algumas semanas. Tinha até trancado a matrícula. Fato que repeti nos dois anos seguintes. Estava ganhando tanto dinheiro que não sentia necessidade de estudar mais. Estava “feito na vida” aos olhos da família e de alguns “amigos da onça”. Único inconveniente eram as longas viagens. A área de abrangência com cidades de bom tamanho e muito distantes, obrigavam-me a ficar distante da sede em Santa Maria, às vezes por até duas semanas. As ausências, da noiva e demais queridos me inquietava.

Foi por essa época que aluguei a tal casa, juntamente com um ex-companheiro de farda, de escola e de sótão, e que agora cursavam Medicina. Vieram com ele mais dois amigos e contemporâneos de caserna, quando ficara reengajado, no quartel. Quatro ao todo. Perfeita harmonia e amizade. Eu ficava pouco em casa. Somente alguns fins-de-semana, quando trabalhava exclusivamente na cidade de Santa Maria e arredores. Nessas oportunidades fazíamos alguma farra. Às vezes aprontavam com suas molecagens, mas a parceria era realmente muito grande. Tanto, que algum tempo depois, eu, muito bem de grana; os convidei para alugarmos um “apê”, bem no coração da “cidade-coração”. Mais molecagens se sucederam. Lá pelas tantas, um aumento polpudo no meu salário, levou-me a acertar com minha perseverante noiva a data de nosso casório. Ah! Quanto ao “apê”, fui o primeiro a abandonar o barco. Em breve, outro amigo seguiria meu exemplo. Por sinal, dois desses parceiros seriam testemunhas de meu casamento. Um deles, brilhante médico, na cidade gaúcha de Tupanciretã é casado com uma farmacêutica, minha colega de turma. O outro, que era bancário, parece ter se cansado deste nível de existência e se foi “pregar peças para São Pedro”. O terceiro companheiro, um militar de carreira, perdi de vista. A Inteligência Infinita que os ilumine e guarde. Onde se encontrem. Todos saudosos.

O amigo bancário tinha sempre uma anedota hilariante ou um causo inédito para nos contar. Dele ouvi pela primeira vez a estória de um certo gaúcho que teria laçado um avião, lá mesmo, na região da Boca do Monte. Várias vezes ouvi contarem como fato. Hoje são citados até familiares dos envolvidos no episódio. E são vistos como fonte de referência, confiáveis. O tal gaúcho era peão de uma estância de gado, das redondezas. Andava ajuntando os animais, quando um avião monomotor tipo "teco-teco" começou a tirar rasantes e a dispersá-los. O jovem campônio não se intimidou. Desamarrou o laço de dezoito braças dos arreios e armou uma grande laçada e ficou na espreita. Quando o “pássaro mergulhou” em novo “fininho”, ele jogou o laço, e suas alças se enrolaram nas asas e no bico do dito cujo, que ato contínuo, foi perdendo força e altura e acabou “solando”, ali mesmo no campo. O “campeiraço”, um tanto assustado, temendo o pior, foi conferir. Encontrou o piloto perfeitamente salvo e “são de lombo”'. Só um pouco assustado, pois o avião, muito pouco avariado, era do Aeroclube de Santa Maria. Alguns contam que o piloto foi expulso do aeroclube. Fato é que o piloto malabarista estaria fazendo graças para sua namorada, residente ali nas redondezas, quando sua manobra acrobática foi interceptada pelo certeiro laço do peão. Resultou daí, concluir-se que os dois jovens eram exímios em suas artes. Dessa vez, porém, o aviador, tinha, sem dúvida levado a pior. Várias vezes ouvi contarem esse mesmo causo, sempre com algum requinte adicional e a pretensa imposição de ser verídico.

sábado, 3 de outubro de 2009

MAIS UM CONTRATEMPO

A notícia de minha aprovação para o curso de Farmácia da UFSM alegrou muito minha família. Era a primeira vez que um membro da linhagem Coelho percorria e vencia todos os níveis escolares e agora a barreira do vestibular. Na verdade não perceberam muito bem o valor daquela conquista. Pois a mesma não parecia trazer resultados imediatos. Além do mais todos entendiam que eu tinha já um nível de escolaridade suficiente para ter um bom emprego. Tanto assim que eu estava bem empregado como Representante Comercial. Ah, outra vez a memória dá uma claudicada: Estava omitindo um acontecimento que marcaria minha existência até os dias atuais. Em 1963, quando eu cursava a quarta série “esbarrei” com uma colega que cursava a primeira série ginasial noturno, no mesmo educandário. Depois de algumas “negaças” nos tornamos namorados. Na época em que passei no vestibular já éramos noivos. Ela e sua família sempre me apoiaram. Minha vitória no vestibular os contentou muito. Anos depois nos casaríamos. Mas disso falo oportunamente.

A vitória, embora suada, não se me afigurava como consagradora. Lutara por mais. Pretendera medicina. Tentaria novamente anos mais tarde. Comemoração e ''bebemoração'' moderadas. Tinha que tocar a vida com os pé no chão. Continuei na representação comercial. Certa vez participando de uma reunião em Porto Alegre, fui informado que seria transferido para Passo Fundo na mesma função. Argumentei que não poderia aceitar dita transferência por estar cursando faculdade em Santa Maria. Não gostaram da informação, que aliás, já lhes era do conhecimento. Eu fora dedurado por invejosos. Despediram-me. E aí a situação se complicou. Não tinha como manter-me sem trabalhar. Teria que arranjar outro emprego, urgentemente. Acolheram-me, novamente, como auxiliar na última farmácia em que trabalhara anos antes. A carga horária na faculdade tomava-me todo o tempo, em dois turnos. Podia trabalhar poucas horas semanais. Especialmente sábados e domingos. O ganho resultante mostrava-se insuficiente pra minhas despesas, agora aumentadas com a faculdade. Quebra-cabeça. A poupança feita no Cacequi já fora usada como sinal na compra de um apartamento “na planta”. E haviam mais as prestações mensais contratuais. Um razoável pepino para um calouro universitário com o coração “blandito” de amor. Recordei ainda uma vez do saudoso irmão Paysano: “Sempre existe uma saída”. A Inteligência Universal se encarregou de apontá-la.

Para espairecer, fui ao cinema, sessão das 22 horas, sábado, depois que saí da farmácia. Não “solito”. Deus me acompanhava. No foyer do cinema, enquanto aguardava o início da exibição, dirigiu-me a palavra um cidadão muito bem apresentado. Disse que estava querendo falar-me havia já alguns dias. Era representante comercial e vira-me algumas vezes fazendo propaganda em consultório médico. Perguntou-me se não estava disposto a trabalhar na empresa em que agora ele seria supervisor. Considerei rapidamente a situação. Respondi-lhe que aceitava, mas antes teria de desligar-me da farmácia. Trataria disso no dia seguinte, Domingo. Perfeito! Deu-me seu cartão de visitas, no verso do qual me apresentava como seu “candidato”, ao gerente da firma. Haveria outros candidatos. O resto era comigo, na entrevista. Depois do filme fui dormir o sono dos justos. Domingo fui trabalhar, e tratar do desligamento, com o bondoso patrão. O qual mais uma vez foi compreensivo. Rápida visita a noiva. À meia-noite tomei o ônibus para a capital, aonde cheguei por volta das sete horas. Troquei o ônibus, por um táxi e rumei para o endereço indicado no cartão. Nessa época o trânsito ainda era calmo na capital. Na frente do prédio da empresa farmacêutica, já esperavam vários candidatos. Um friozinho percorreu-me a coluna espinhal. E agora? “Não está morto quem ‘peleia’”'... Valha-me "O poder do pensamento positivo" de Norman Vincent Peale. Corri os olhos na fila. Peguei o cartão de apresentação, escrevi no verso, num espaço ainda restante: "Senhor Gerente, sou o candidato de Santa Maria, indicado pelo senhor “Cicrano”. Sou o número doze da fila. Favor não decidir nada antes de falar comigo". Pedi à secretária que entregasse aquele cartão do supervisor para o Gerente. E aguardei. A fila, que havia aumentado um pouco, depois de minha chegada, começou a desaparecer. Lá pelas tantas, convidado a entrar, cumprimentei o suposto gerente, desejando-lhe Bom-Dia. Mandou-me sentar, e exibindo o cartão com a minha mensagem, indagou se era eu o portador do mesmo. Respondi afirmativamente. Cumprimentou-me dizendo:

-Muito bem senhor Coelho! A vaga de Santa Maria lhe pertence. Parabéns!

Eu estava novamente bem empregado. Eu, um “Dezembrino”!

Pra quem DEUS promete, não falta.

DA DROGARIA PARA A FARMÁCIA

Fui pra casa de meu irmão padeiro com o qual morava minha mãe. Estava tudo bem. Com eles passei a noite. Pela manhã tomei a maleta, já arrumada na véspera. Tinha pouca roupa. A maior parte não mais me servia. Despedi-me de meus queridos e comecei a dar de rédeas pro Cacequi. Venci os quarteirões do bairro e cheguei e ao centro de Santa Maria. Um pensamento ocorreu-me, então: “E se eu conseguisse um emprego!” Poderia ficar junto dos meus e não precisaria perder mais um semestre de ginásio com a transferência de volta para Cacequi. Com esses pensamentos, seguia em busca da estação ferroviária, de onde às 8h40min tomaria o trem. Parei de súbito! Justo na frente de uma farmácia que acabara de ter a cortina levantada por um casal já maduro. Desejei-lhes bom-dia. Corresponderam e puseram-se “às ordens”. Apresentei-me. Disse-lhes que era reservista, liberado no dia anterior. Naquele instante estava me dirigindo à estação ferroviária. Ia tomar o trem que levar-me-ia para reassumir meu ofício de auxiliar de farmácia, do qual tinha me licenciado para prestar o serviço militar. E emendei:

- O senhor e a senhora estariam necessitando de um auxiliar de farmácia?

- Sim, mas tem que ter experiência em manipulação. Respondeu a senhora, muito alegre e entusiasmada. Expliquei que tinha experiência e estava disposto a dar provas disso. Bastava ela mostrar seu laboratório de manipulação e o livro de registro das prescrições médicas. Mostrou-me. Fui dando explicações e mostras convincentes de familiaridade com o ofício. Argumentou que era uma empresa pequena, não podia pagar mais que o salário, acrescido de comissão sobre a produção, além de participação em curativos e injeções.

- Me serve, respondi. Perguntou quando eu poderia começar.

- No dia seguinte, certamente. Tudo combinado. Despedi-me com o “até amanhã”. Dei de mão na maleta e retomei a direção da estação ferroviária. Às onze horas estava chegando no Cacequi para uma estadia relâmpago. Apresentei-me na antiga farmácia e já fui dizendo que não ia continuar. Formalizei o pedido de desligamento em carta dactilografada ali mesmo. Nem prestei muita atenção no desapontamento do antigo chefe, que assim mesmo, colocou-se à minha inteira disposição. Caso alguma coisa saísse errado, as portas daquela empresa estariam sempre abertas para mim . Agradeci. Despedi-me e passei na casa do antigo companheiro, onde tinha morado algum tempo. Destinei umas coisas que lá eu havia deixado. Almocei com os amigos, que se diziam desapontados. Nem lembrei de ver a “querendona”. Agora, quase um ano depois, eu deixava novamente o Cacequi, desta feita pra não retornar tão cedo. No dia seguinte às oito horas, estava eu na frente da nova farmácia a que iria agora dedicar-me, na cidade universitária de Santa Maria. Trabalharia durante o dia e estudaria à noite. Nunca repeti uma série. Trabalhei aproximadamente um ano nessa farmácia e fui convidado para ser representante de um laboratório industrial farmacêutico. Bom conhecedor das especialidades farmacêuticas e desenvolto no trato com as pessoas, eu seria propagandista-vendedor-cobrador. De quando em vez era necessário sair da cidade. Para ir a localidades vizinhas ou para assistir reuniões na capital dos gaúchos, a muy valorosa Porto Alegre.

Concluí o ginasial e o primeiro ano Colegial (científico) estudando e trabalhando nessa empresa, onde fiquei mais de três anos. Em 1965 pedi transferência escolar para o, então famoso, Colégio Estadual Manoel Ribas, pelo fato deste estar preparando os alunos que se destinavam a área tecnológica. Eu pretendia cursar engenharia. No início foi tudo muito bem. Depois alguns professores decidiram não mais abonar minhas faltas, quando eu saía para as viagens. Argumentei que os antigos professores sempre foram compreensivos e acolheram, até porque meu aproveitamento sempre fora satisfatório. Um deles até revelou surpresa com meu aproveitamento em matemática, que ele ensinava. Discutimos. Disse-lhe que estava a valorizar sua matéria. Em verdade eu nunca tivera maiores dificuldades com essa disciplina. Em resposta fui impedido de continuar assistindo suas aulas. Fui admoestado, ainda, de que sem aquela matéria eu não venceria a barreira do vestibular. Retruquei. Ele não tinha poder para me impedir de passar no vestibular. Ele o veria. Dei meia volta. Passei na secretaria e relatei à Diretora do educandário o ocorrido. Pedi cancelamento de matrícula no “Maneco”. Lamentou. Era uma Mestra e Amiga.

Passei num curso pré-vestibular e matriculei-me. Paralelamente, me inscrevi no exame de Madureza, que era uma modalidade parecida com o ENEM, dos dias atuais. Assim trabalhava durante o dia. À noite assistia aulas do pré-vestibular, e tomava aulas particulares de francês aos sábados de tarde. No exame Madureza, matemática não era obrigatório. Não a incluí. Substituí por francês. Não queria mais Engenharia. Faria vestibular de ciências da saúde. Afinal tinha alguma afinidade com essa área. No meio do ano passei em quatro ou cinco matérias tidas como mais fáceis. Entre elas, a geografia. Continuei no mesmo ritmo no trabalho e no pré-vestibular. No fim do ano dei sorte outra vez, passei novamente. Desta vez eliminei Química, Física e Biologia. De posse das folhas modelo 18 e 19 (conclusão do ginasial e colegial) fui fazer inscrição para prestar o vestibular no início de 1966. Na fila da inscrição encontrei meu antigo amigo, ex-companheiro de quartel, de escola e de sótão. Surpreso, quis saber o que eu estava fazendo ali. Respondi: O mesmo que ele. E expliquei minha “maratona”. Nós dois faríamos vestibular para Medicina. Ele como única opção. Eu, um tanto inseguro, tentaria assegurar uma vaga na Farmácia, em segunda opção. Passamos os dois. Ele conseguiu boa classificação na Medicina. Eu, embora, passado na média geral, ficara com nota muito baixa em biologia, imprescindível na medicina. Classificado entre os excedentes da Medicina, fui chamado na Farmácia. Por muito tempo carreguei o trauma de ser aluno da “FARM” (Faculdade dos Alunos Reprovados na Medicina). E aqui começa uma outra etapa de minha atribulada carreira.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

MISSÃO CUMPRIDA


A vida parecia transcorrer normalmente. “O que passou, passou...” era comum se ouvir de algum amigo, conhecedor de nossos revezes. Ainda hoje se ouve daqueles que não viveram nossas experiências, contrárias às leis naturais. Vale como solidariedade, ou caridade humana. Não resolve nada. Não apaga da memória nem da consciência. Tanto que estou a recordar, e da pior maneira possível. Depois de quase meio século decorrido, fazendo empenho para não “chorar o leite derramado”. Ou, como inúmeras vezes, ouvi de minha mãe: "Tem-se que pensar muito bem antes de fazer, depois não adianta torcer as orelhas". Além do mais as aulas, agora, na 3ª série do Ginásio Maria Rocha, mostravam-se muito mais pesadas do que o foram no Cacequi. Exigiam-me mais atenção, dedicação e concentração. No quartel estava tudo sob controle. O primeiro sargento enfermeiro tinha sido guindado a subtenente. Um cabo antigo estava fazendo curso para sargento. “Em pouco tempo faltariam graduados na saúde”, ouvíamos com certa frequência do referido, agora suboficial, como a nos encorajar para continuarmos engajados, quando terminássemos nosso tempo de serviço obrigatório.

Éramos muito prestigiados por todos os superiores. Meu colega de escola cursava o primeiro ano científico e ficaria até terminar o colegial. Concluiria o curso pra cabo e melhoraria suas finanças. Em dado momento, pedimos para “desarranchar”. Significa que não dormiríamos mais no quartel. Só quando estivéssemos de guarda ou plantão. Alugamos um pequeno alojamento no sótão de uma pensão e aí estudávamos e dormíamos após as aulas e quando não tínhamos expediente no quartel. Por sinal, nessa época, meu companheiro de farda e de escola “aprontou” para outro companheiro que conosco dividia o sótão. Tinha findado a loção pós-barba de meu colega de escola e ele fez ''xixi'' no recipiente, repondo-o no local, onde o outro costumava dar uma “voltinha”. Todos os dias, registrávamos o cheiro do “perfume”. Lá pelas tantas meu colega resolveu pegar o outro com a “boca na botija”. Disse-lhe que usava o vidro vazio para nele urinar, pois não tínhamos banheiro no sótão. Essa sacanagem e a da “moedinha de salame”, da qual fui vítima, ainda são motivos de boas gargalhadas quando nos encontramos, mesmo após tantos anos. Com esse companheiro de escola e sótão, vários anos depois, eu voltaria a dividir moradia. Alugamos uma casa e depois um apartamento com mais dois amigos. Disso falarei oportunamente. Retornemos ao quartel.

Já nos encaminhávamos para a metade do ano. Especulava-se quem receberia baixa nas primeiras turmas. Os que tinham ficha limpa sairiam antes. Exceto os “empregados”, pois ficariam no chamado núcleo-base, para treinar os próximos convocados. Os que tinham cometido “delito” seriam liberados depois. Quanto mais anotações, tanto mais tarde seria a liberação. Fomos convidados, formalmente, a continuar. A especialidade de Saúde oferecia futuro. Era uma grande chance de carreira. Meu colega, e amigo, ficaria por mais dois ou três anos. Eu, com a “marca quente”, não vacilei. A disciplina militar não me cativara. Ainda estava bastante aborrecido com o que tinha vivenciado. Mal poderia eu imaginar que pior é a disciplina que a sociedade nos impõe. Muitos anos mais tarde eu teria essa confirmação. Receberia “baixa”, sim. Tinha emprego garantido lá em Cacequi, onde era prestigiado e esperado. E o desligamento do compromisso militar veio antes de completar um ano de farda. Fui liberado nas primeiras turmas. Não sem os protestos dos colegas e superiores da enfermaria regimental. “Estava feito, estava feito!” “Paulada que já foi dada nem Deus tira”. Depois de bastante idade passei a pretender complementar esse ditado: “...nem Deus tira mas pode aliviar a dor”. Ainda não estou totalmente persuadido disso. Com a roupa do corpo chegara na caserna. Com a mesma sairia. Um pouco apertada, é verdade. Pois além de ter crescido um pouco, também estava mais robusto, pra não dizer “gordacho”'. Exceto artigos de higiene e um talher, deixei tudo no armário do alojamento. Sobraram no bolso alguns cobres do último soldo e poucas economias de “serviço” prestado aos colegas de caserna.