Durante o período mais crítico de recuperação do acidente sofrido estive sempre rodeado de amigos. Entre eles estavam meus irmãos, cada um auxiliava como podia. Minha mãe, em que pese, seu reumatismo ter se agravado, não saía da igreja onde comparecia para agradecer ao Supremo e Onipotente Criador o milagre de ter me poupado a vida. Minha sogra, que em verdade, era outra mãe, se desdobrava atendendo sua casa e seu neto-filho, vez que Minha Regina ficava o tempo todo ao meu lado. Os colegas de profissão alternavam-se em visitas de verdadeira solidariedade. Alguns até cotizaram-se e compraram um aparelho portátil de TV. Para eu espairecer, diziam. Alguns menos próximos mantiveram-se indiferentes à minha sorte. Houve até algum que teria argumentado: “Não mandei se acidentar...” Meu amigo do Cacequi, mantinha seus colegas médicos e nossos demais amigos, sempre informados sobre minha recuperação. Até o antigo colega de caserna, agora estudante de medicina, aparecia para alegrar-me recordando as peripécias compartilhadas alguns anos antes. Toda essa demonstração de carinho e solidariedade não foi suficiente para acelerar a minha recuperação.
Em dado momento, induzido por parentes e amigos, preocupados com o que entendiam por negligência de determinado médico, decidi buscar assistência em Porto Alegre. Por cerca de um ano fiquei sendo remendado na Capital. Conhecia alguns médicos especialistas em fraturas, desde a época em que estagiara como propagandista, assessorando colegas da antiga empresa norte-americana. Fui avaliado e submetido a quatro cirurgias. Destas uma corretiva e três de enxerto ósseo no meu braço direito que custou muito a consolidar. Este fato tirou-me muitas noites de sono. Preocupado com a saúde e com a faculdade de farmácia para a qual eu retornara graças a insistência de outro antigo amigo e colega comensal da então Juventude Universitária Católica, JUC. Encontrei-me com esse amigo, agora já farmacêutico e alto funcionário da UFSM. Ficou impressionado com o meu caso e encorajou-me a voltar a estudar, aproveitando a mesma matrícula de 1966. A ela tinha eu direito pois não existia qualquer tipo de restrição. Não renovara e nem trancara a matrícula, justo no ano do acidente. Além do mais como membro do Egrégio Conselho Universitário, seria defensor da minha reintegração ao curso de Farmácia. Uma recomendação dele: Deveria eu concluir o curso durante os próximos quatro anos. Era decorrência da lei de concursos públicos. Também o vestibular tinha validade de dez anos. Ocorreu como ele previu.
Retornei à vida acadêmica farmacêutica. Não sem dificuldades. Havia decorrido cinco anos desde que eu ''dependurara as chuteiras” de estudante. Muita coisa mudara no ensino, inclusive, como conseqüência da badalada reforma do ensino universitário, durante a ditadura militar. Para ter condições de acompanhar as aulas, paralelamente, eu estudava matérias fundamentais que deveria ter visto no terceiro grau. Recordemos que eu cortei atalho pelo curso Madureza (artigo 99). Logo comecei a ver alguma razão na profecia do antigo professor Constantino Reis, para o qual eu não chegaria a universidade sem a matemática. Entretanto essa matéria jamais me nocauteou. As circunstâncias se alinham e fecham o cerco envolvendo o indômito Rapa-de-Tacho dos anos 50/60. A financeira FIN-HAB começa a fazer uma série de exigências para regularizar o financiamento do apê de que éramos promitentes-compradores. Do referido imóvel, orientado por advogado, já havia depositado em juízo, cerca de um quinto do valor total, mais ou menos dois anos de prestações. Nessas circunstâncias, com gesso e tudo o mais, assistia umas aulas de farmácia. Dependurava outras tantas quando tinha que ir fazer revisão médica em Porto Alegre.
E não dava tréguas a Financeira. Esta em determinado momento decidiu ,unilateralmente, cancelar o financiamento alegando que eu estaria em dificuldade financeira para honrar o contrato de compra do imóvel. Nós estávamos em dia com as parcelas. Recebia auxílio-doença do INPS (bons tempos da ditadura militar) e ainda contava com o dinheiro da venda do primeiro fusquinha, já referido. Acionei o advogado em defesa do patrimônio. Resultou que a financeira devolveu todas as parcelas pagas. Por força de uma cláusula contratual que determinava que em caso de desistência unilateral a outra parte receberia os valores pagos atualizados com juros e correção monetária. Somados esses, com o referido valor do fusquinha e um seguro de vida da União dos Caixeiros Viajantes, consegui comprar um chalé com terreno e árvores frutíferas, não muito distante do apê em questão. Mudamo-nos para essa casa que ficamos devendo uma parte do valor. Pagamos sem maiores sacrifícios em alguns meses. A tensão aliviou um pouco. A faculdade arrancava o meu couro. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre o exame de raios-X acusava fratura não consolidada. Na terceira cirurgia me foi retirado um naco da crista ilíaca e enxertado no rádio do braço direito.
A confiança na recuperação começava a cambalear, quando Minha Regina decidiu acionar os 'poderes sutis' de uma sua freguesa e amiga. Nessa época minha esposa vendia perfumes e cosméticos Christian Gray para aliviar nossas contas assoberbadas com as despesas de viagem a Porto Alegre, medicamentos, e a faculdade. Esta, gratuita. Mas livros, transporte e refeições corriam por nossa conta. A partir do momento em que comecei a beber suco de laranjas com cenoura ralada, receita dos “guias”, comecei a sentir a sensação de soldagem do último enxerto ósseo. Quando fui à consulta médica para nova revisão, o exame de raios-X confirmou que a fratura estava consolidada. Retornando à faculdade, sem o gesso, fui ovacionado. A maioria dos colegas havia rubricado minha manga de gesso, desejosos de sucesso, antes de eu viajar para a última revisão. Minhas dificuldades tinham aliviado. Os médicos Davi Gusmão e Paulo Eicheimberg me remendaram e incentivaram a concluir a faculdade. Os espíritos contribuíram decididamente em várias oportunidades. Estou em débito com todos eles. Ah! os amigos. Que a Inteligência Universal ilumine a todos, onde estejam.