sábado, 10 de outubro de 2009

RONCO E A POLVADEIRA NAS ESTRADAS

Mais ou menos na época do nascimento de nosso filho, recebemos uma visita inusitada. Estávamos em casa de meus sogros quando lá se apresentou um ex-companheiro de trabalho, que fora promovido a supervisor na empresa de que me demitira havia pouco tempo. Quando cheguei do trabalho, ele já se encontrava lá. Conversara detidamente com Minha Regina e sua mãe, minha sogra. O objetivo de sua visita era me levar de volta para sua firma que estava tendo dificuldades para preencher o lugar que eu deixara vago. Estavam dispostos a atender minhas reivindicações. Fiz-lhe ver que agora era tarde, pois além de eu já dispor de carro, já estava ambientado na nova empresa onde era prestigiado. Também o fato de minha senhora estar prestes a dar-me um herdeiro pesava. Afinal não era um bom momento para mudanças radicais. Hoje passados tantos anos, confesso, foi uma decisão muito corajosa. Só Deus o sabe. Era uma bela empresa. Em todos os sentidos. Ademais, entre minhas muitas preocupações, estava o porvir da nova família. Mais uma vez, a sorte fora lançada. Agradeci a oportunidade que me ofereciam. Sentia-me valorizado e lisonjeado. Decididamente não retornaria nem com a mediação da esposa e da sogra. Queridas!

Aos poucos a “polvadeira” se ia dissipando. Ah! Essa expressão trouxe-me à memória um episódio muito gratificante. Vou rememorar. Viajava, certa vez, em meu fusquinha da cidade de Caçapava do sul, onde acabara de trabalhar. Destinava-me à cidade vizinha, São Sepé, deixando densa “polvadeira” na estrada sem asfalto. No meio do percurso, na altura da localidade conhecida como Cerrito do Ouro, percebi um aceno. Reduzi a marcha e vi um vulto de porte físico avantajado em relação a mim, em pé, na beira da ''carreteira''. Trajando bombachas, jaqueta e chapéu aba larga cobertos de pó. Não lhe observei as botas que deveriam estar nas mesmas condições. Baixei o vidro, cumprimentou-me e perguntou se não seria incômodo dar-lhe carona até a cidade. Estava com doença em casa. Perdera o ônibus para ir buscar socorro. Seguimos. Lá pelas tantas me disse que era a segunda vez que eu salvava seu “pelego”.

- Mas como? retruquei questionando. Então indagou se eu não era o Rapa-de-tacho, enfermeiro no III BCCL, da turma de 1942.

- Sim, vivenciei isso tudo. E daí?

Tirou o chapéu, que devia ter quase uns três palmos de diâmetro, somando copa e aba. Com a barba por fazer, ainda me era desconhecido. Apontou uma “bonita” cicatriz no supercílio direito e completou.

- O senhor fez um serviço que nem médico faria melhor.

Aí me caiu a ficha. Parei o carro, nos cumprimentamos como velhos e muito bons amigos. Ele disse que o ferimento tinha sido em uma briga. Na época inventou a queda no banheiro para esquivar-se da cadeia e não retardar sua baixa. Respondi que imaginara ser resultado de briga, e minha função como enfermeiro era fazer-lhe o curativo. Continuou me tratando por “senhor”, embora eu o dispensasse de tal.

- Negativo! Sempre que me encontrasse eu seria o “senhor” que o salvara duas vezes, respondeu. Chegamos a São Sepé. Deixei-o no hospital. Despedimo-nos efusivamente. Tornou a agradecer-me. Disse que morava bem próximo de onde eu o apanhara e que chegasse para um amargo, numa passagem por ali. Não lembrei seu nome e constrangido, esqueci de perguntar-lhe na oportunidade. Nunca mais nos tornamos a encontrar. A “moral” do fato deve nos reportar ao ditado popular: "Quem surra esquece, quem apanha lembra." Construtivas lições de respeito e consideração que nossa sociedade contemporânea perdeu na “polvadeira” da dita “evolução”. Não há mais respeito e consideração como “antanho”.

Outro episódio envolvendo consideração e estima. Desta vez a falta de um acabou por revelar a inexistência do outro atributo. Acabara de trabalhar na bela, hospitaleira e quente Uruguaiana. Primeira e única cidade projetada e instalada durante o decênio da Revolução Farroupilha pelo general Bento Gonçalves da Silva, então presidente de nosso amado Rio grande de São Pedro. Uma sexta-feira. Encerrara cedo a conta no hotel. O carro estava pronto. Esperara até próximo das vinte e uma horas para cobrar um cliente “carretão”. Tão logo recebi, acelerei o “cascudinho” e tomei a estrada para Santa Maria, distante 405 quilômetros dali. Ao passar em Alegrete, depois de percorrer cerca de 150 quilômetros, resolvi tomar um lanche. Não costumo jantar. Fui a lancheria da estação rodoviária, na época, moderna, recentemente inaugurada. Lá estavam dois colegas e “amigos”. Jantavam, enquanto esperavam o ônibus que saíra de Uruguaiana, quase junto comigo. Terminava meu lanche quando o ônibus encostou. Os dois “muy amigos” se escalaram como caronas, para viajar comigo. Tudo bem. Afinal faltavam duzentos e tantos quilômetros a serem vencidos até nossa cidade. E a companhia de dois “pesos-pesados” não podia ser desprezada. Ainda mais numa noite gelada naquela estrada deserta.

Os ditos-cujos acabaram de jantar. Pegaram mais uma botelha de Velho Capitão. Colocaram suas bagagens no meu fusquinha, acomodamo-nos e zarpamos. Na estrada, liquidaram com o “velho oficial marujo”. Adormeceram e roncaram estrepitosamente. Não me incomodei. Seus roncos até me mantinham acordado. Sempre senti muito sono ao dirigir, especialmente em longas distâncias. Lá pelas tantas, já à vista das luzes de São Francisco de Assis, estourou um pneu da roda esquerda traseira do fusquinha e teria que ser substituído. Chamei os dois companheiros roncadores. Sequer mudaram o ritmo dos roncos. Macaqueei o carro e troquei o pneu, com o peso extra dos dois brutamontes e suas bagagens dentro. Passei no borracheiro, para consertar a câmara e retomei a viagem com os dois marmanjões sempre roncando. E veja bem, os dois juntos deveriam fazer três Rapa de tacho. Ou quase três. Dali rodamos mais uns 170 quilômetros e chegamos na nossa cidade. Deixei-os cada um em sua casa. Eram aproximadas quatro horas quando cheguei no meu apartamento, para beijar Minha Regina e nosso rebento. Dias depois eu os reencontrei. Denunciei o episódio. Ainda acusaram-me de não os ter chamado insistentemente. Alegaram ter sono “muito pesado”. Aí entendi. Fora o tal “excesso de peso” que fez rebentar o pneumático. Pode uma coisa dessas?

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