sexta-feira, 2 de outubro de 2009

MISSÃO CUMPRIDA


A vida parecia transcorrer normalmente. “O que passou, passou...” era comum se ouvir de algum amigo, conhecedor de nossos revezes. Ainda hoje se ouve daqueles que não viveram nossas experiências, contrárias às leis naturais. Vale como solidariedade, ou caridade humana. Não resolve nada. Não apaga da memória nem da consciência. Tanto que estou a recordar, e da pior maneira possível. Depois de quase meio século decorrido, fazendo empenho para não “chorar o leite derramado”. Ou, como inúmeras vezes, ouvi de minha mãe: "Tem-se que pensar muito bem antes de fazer, depois não adianta torcer as orelhas". Além do mais as aulas, agora, na 3ª série do Ginásio Maria Rocha, mostravam-se muito mais pesadas do que o foram no Cacequi. Exigiam-me mais atenção, dedicação e concentração. No quartel estava tudo sob controle. O primeiro sargento enfermeiro tinha sido guindado a subtenente. Um cabo antigo estava fazendo curso para sargento. “Em pouco tempo faltariam graduados na saúde”, ouvíamos com certa frequência do referido, agora suboficial, como a nos encorajar para continuarmos engajados, quando terminássemos nosso tempo de serviço obrigatório.

Éramos muito prestigiados por todos os superiores. Meu colega de escola cursava o primeiro ano científico e ficaria até terminar o colegial. Concluiria o curso pra cabo e melhoraria suas finanças. Em dado momento, pedimos para “desarranchar”. Significa que não dormiríamos mais no quartel. Só quando estivéssemos de guarda ou plantão. Alugamos um pequeno alojamento no sótão de uma pensão e aí estudávamos e dormíamos após as aulas e quando não tínhamos expediente no quartel. Por sinal, nessa época, meu companheiro de farda e de escola “aprontou” para outro companheiro que conosco dividia o sótão. Tinha findado a loção pós-barba de meu colega de escola e ele fez ''xixi'' no recipiente, repondo-o no local, onde o outro costumava dar uma “voltinha”. Todos os dias, registrávamos o cheiro do “perfume”. Lá pelas tantas meu colega resolveu pegar o outro com a “boca na botija”. Disse-lhe que usava o vidro vazio para nele urinar, pois não tínhamos banheiro no sótão. Essa sacanagem e a da “moedinha de salame”, da qual fui vítima, ainda são motivos de boas gargalhadas quando nos encontramos, mesmo após tantos anos. Com esse companheiro de escola e sótão, vários anos depois, eu voltaria a dividir moradia. Alugamos uma casa e depois um apartamento com mais dois amigos. Disso falarei oportunamente. Retornemos ao quartel.

Já nos encaminhávamos para a metade do ano. Especulava-se quem receberia baixa nas primeiras turmas. Os que tinham ficha limpa sairiam antes. Exceto os “empregados”, pois ficariam no chamado núcleo-base, para treinar os próximos convocados. Os que tinham cometido “delito” seriam liberados depois. Quanto mais anotações, tanto mais tarde seria a liberação. Fomos convidados, formalmente, a continuar. A especialidade de Saúde oferecia futuro. Era uma grande chance de carreira. Meu colega, e amigo, ficaria por mais dois ou três anos. Eu, com a “marca quente”, não vacilei. A disciplina militar não me cativara. Ainda estava bastante aborrecido com o que tinha vivenciado. Mal poderia eu imaginar que pior é a disciplina que a sociedade nos impõe. Muitos anos mais tarde eu teria essa confirmação. Receberia “baixa”, sim. Tinha emprego garantido lá em Cacequi, onde era prestigiado e esperado. E o desligamento do compromisso militar veio antes de completar um ano de farda. Fui liberado nas primeiras turmas. Não sem os protestos dos colegas e superiores da enfermaria regimental. “Estava feito, estava feito!” “Paulada que já foi dada nem Deus tira”. Depois de bastante idade passei a pretender complementar esse ditado: “...nem Deus tira mas pode aliviar a dor”. Ainda não estou totalmente persuadido disso. Com a roupa do corpo chegara na caserna. Com a mesma sairia. Um pouco apertada, é verdade. Pois além de ter crescido um pouco, também estava mais robusto, pra não dizer “gordacho”'. Exceto artigos de higiene e um talher, deixei tudo no armário do alojamento. Sobraram no bolso alguns cobres do último soldo e poucas economias de “serviço” prestado aos colegas de caserna.

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