A existência afigurava-se na segunda metade dos anos 60 como uma seqüência de fatos totalmente previsíveis. As marcas de infância pobre e humilde pareciam ter se dissolvido numa adolescência carregada de promessas e de realizações bem sucedidas. Realizações essas que nos anos 60 eu interpretava como resultantes necessárias e obrigatórias do meu esforço e dedicação. E assim deveria ser com todos aqueles que lutam com pertinácia. Não faltavam “oráculos a vaticinar” o futuro brilhante e seguro de um jovem cuja existência “notaram” aos treze anos. Esses mesmos profetas, anos depois, jactar-se-iam de terem “previsto” meu suposto sucesso, com vários anos de antecedência. Não mais que um quarto de século havia decorrido e já eu estava desejoso de reencontrar esses amigos arautos para deles cobrar o complemento do vaticínio que fizeram em relação a mim.
Desde menino sou temente a Deus. Freqüentei a igreja por quatro décadas. "Orai e vigiai" é uma máxima legada pelo Proto-mártir da Cristandade, que a cunhou e recomendou aos seus discípulos mais diletos. É o que consta nos anais da história Cristã. Não recordo de ter ouvido a dissecação de tais palavras. Certamente que me foram explicadas. Mas o foram em momentos em que eu não estava ''aceso''. De maneira que fui ocupar-me das mesmas, só bem mais tarde, quando meu espírito decerto mais atilado, me induziu a revisão. Parece que toda a vida humana gira em torno da observação incondicional da ordem do Divino Mestre. Não basta orar, tem que fazê-lo com fé. Não basta trabalhar desordenadamente. Neste caso o fruto será duvidoso ou de má qualidade. O fotógrafo consciente busca sempre o melhor foco para manifestar sua arte. De todos os predicados a mim dirigidos, ''batalhador'' se me afigura como o menos injusto. Não me posso queixar da inteligência, posto que conclui tê-la em nível suficiente para mostrar-me situações importantes que outrora não me ocorrera. E o simples fato de eu detectar a limitada inteligência que me balanceia, por si só, basta para legitimar minha classificação, como Homo Sapiens.
Vencidas essas necessárias divagações, retorno a focar minha memória no cenário em que minha novel família se inseria nos idos da década de 1960/70. Como seria de prever na nova empresa não tive grandes vantagens. A remuneração era semelhante a de outras tantas multinacionais. O diferencial corria por conta da comissão sobre as vendas. Com uma linha de produtos bem mais modesta teria eu que vender mais para mais ganhar. O departamento de propaganda dessa firma não se comparava ao da antiga por mim rejeitada. O ambiente de trabalho era tão bom quanto. Exigência de cobertura de cotas era comum em todas. Prêmios por objetivos atingidos eram conquistados vez que outra. Setores bem menores deixavam uma margem para maior convívio com a família. Mas os ganhos iriam diminuir agora que a empresa decidira finalmente dotar o meu setor com carro. Com isso o ganho adicional da quilometragem deixava de ocorrer. Como eu administraria aquela diferença? Agora que era casado e tinha um rebento para criar. O fusquinha, de propriedade, seria vendido. O dinheiro seria aplicado na poupança para auxiliar na prestação do apê com promessa de financiamento pelo BNH.
Outra opção era estudar a permuta, mais uma vez, por outra empresa, mas esta não era vista com muito entusiasmo. A última troca nos deixara escaldados. Empresas e empregos não faltavam. Volta e meia um ou outro amigo sondava a possibilidade de transferência. Respondia estar satisfeito e que teria enorme satisfação em trabalhar em sua empresa, se as circunstâncias se alinhassem favoravelmente. Dessa maneira, eu e Minha Regina íamos administrando, com alguma tranqüilidade, a nossa pequena família. Morávamos num apê de quarto andar, mas tínhamos os pés bem plantados no chão. Por essa época minha empresa apertou o cinto em alguns procedimentos. O vendedor-cobrador não poderia reter nenhum valor em seu poder. Todo o recebimento seria depositado ou feito um passe até o final do expediente bancário ou na abertura imediata no dia seguinte. Por vezes tinha que ir à casa do gerente do banco, fora do horário de expediente, para cumprir a determinação.
Certa vez ocorreu-me de enviar, juntamente com os relatórios de produção e de despesas, um montante em moeda corrente com valor declarado, pelo transporte rodoviário (transportadora planalto). E aqui uma grande incógnita: os relatórios e o dinheiro miúdo foram acusados normalmente. O dinheiro graúdo, alegação dos superiores, não estava no pacote criteriosamente fechado, amarrado, selado e declarado. Era fim-de-semana, véspera de feriadão, eu não podia ficar com valores em meu poder. Esse o motivo de buscar alternativas para cumprir a determinação. Expediente, aliás, já explorado outras vezes. Sempre tinham dado certo. Mas nessa vez os valores eram maiores. Resultado: o valor alegado como não recebido me foi debitado e cobrado em seis parcelas mensais que foram deduzidas de meu salário e comissões.
Com essa sobrecarga financeira começava também minha desestabilidade psíquica e emocional. Teria que estourar de algum modo. E aconteceu. Era costume reunir-me com o supervisor da firma, nos finais de semana, para prestar contas e projetar a semana seguinte. Numa dessas oportunidades o dito cujo não estava em sua casa na cidade. Encontrava-se em sua chácara beira-rio. Pra lá me dirigi, para a costumeira reunião. Junto foi Minha Regina. O rebento, mui agarrado com a avó, com ela ficou. Além de ser domingo, um dos familiares do supervisor estava de aniversário. Tinha churrasco. Tinha vinho Jaguari. Após a prestação de contas, comemoramos e “bebemoramos”. E aqui, certamente, faltaram cautela e caldo de galinha. Nunca fui um “alterocopista” de boa performance. Ainda hoje, este galo velho se faz “pealar” com quirela. Após as libações, com o sol encoberto e nuvens ameaçadoras, decidi retornar com Minha Regina para nosso filho e casa. O carro que eu tinha recebido da firma tinha mais máquina que meu antigo fusquinha. Era fusca também. Motor l.300. A bem da verdade, eu ainda não estava mui vaqueano na direção dele. Ao entrarmos na cidade, com o asfalto molhado, eu tentava ultrapassar uma camionete DKW. Esta acelerou e resistiu minha ultrapassagem. Em sentido contrário vinha uma camionete GMC Chevrolet C-10. Na curva quando enxerguei a GMC, freei e reduzi a marcha, com a intenção de entrar atrás da DKW. Meu fusca derrapou no asfalto molhado, atravessou e a metade traseira esquerda foi batida pelo pára-choque dianteiro da GMC. A porta se abriu e fui arremessado para fora, indo cair no meio dos cascalhos do acostamento. Perdi a consciência. Recuperei-a quando estava adentrando o hospital. Eu estava literalmente demolido. Poli-fraturado. Dois braços e um cotovelo despedaçados. Fraturas em toda a face. Tinha caído de “focinho” no acostamento. O fêmur esquerdo não fraturou. Só rachou. A articulação óssea do cotovelo esquerdo triturou. Ainda na entrada do hospital eu enfiava a mão direita na manga do paletó e tirava o que eu pensava serem pedras de cascalho e jogava fora. Mais tarde meu amigo lá de Cacequi, agora médico, após ter-me socorrido, disse que as “pedrinhas” que eu dispensara eram pedaços de ossos de meu cotovelo e braço esquerdo, que poderiam ter sido reconstituídos. Mais uma desastrosa conseqüência da falta de prudência. Vale dizer, naquele domingo, oito de novembro de 1970, não tive cautela e nem tomei caldo de galinha. Milagrosamente, Minha Regina não sofreu um só arranhão. O pecador fora eu. Sobre eu deveria recair o castigo. Mas claro, ela teria que ajudar na reconstrução do que restara. E como ajudou. Segurou e segura nas pontas, sem chiar. Não bebeu e não bebe bebida alcoólica alguma. Por princípio e por prudência me trás com rédeas curtas hoje. Mais adiante direi como esse acidente redirecionou minha, e talvez nossas vidas.
2 comentários:
Ótimo capítulo... Texto envolvente, bom ritmo, grande estilo. Tá cada vez melhor!
Parabéns!
Ficamos no aguardo de novos capítulos...
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