quarta-feira, 30 de setembro de 2009

RETORNO AO QUOTIDIANO NA CASERNA.

Uma semana de folga nos foi concedida para descanso e matar a saudade da família. Tudo estava como deixara, antes de eu partir para as inusitadas 'manobras' de que acabara de chegar. Reapresentei-me antes. Precisava faturar uns trocados tirando serviço de plantão, ou guarda pra algum companheiro disposto a pagar pra se esquivar da escala. Os treinamentos foram retomados. Exercícios físicos. Ordem Unida. Aulas e palestras sobre civismo, regulamento disciplinar do exército e dos serviços em geral. Após almoço e jantar se jogava ping-pong. Os que apreciavam costumavam disputar uma “pelada”. Nessas oportunidades um ou outro graduado, cabo ou sargento, era convidado a reforçar um dos times. Às vezes os dois lados recebiam reforço. Aos seis meses de caserna fomos dados por 'prontos'. Apenas ratificamos o juramento à pátria, os que haviam integrado o contingente do Abivaque, que estavam mais experientes e maduros. Da maioria desses, saíram candidatos para freqüentar o Curso de formação de Cabo. Foram selecionados três por companhia. Eu era um deles. Sobrecarregava nossa rotina. A cobrança também aumentou sobre nossos atos.

Repentinamente, um surto de parotidite epidêmica, vulgarmente conhecida por caxumba, me enviou para o Hospital da Guarnição Militar de Santa Maria- HGUSM. Ali estive de 'molho' por quase duas semanas. Minhas parótidas salivares inflamaram e aumentaram de volume. Tal foi o efeito que fiquei ainda mais parecido com um “sapo-cururu” albino. Não confundir com o “sapo-boi” que é mais comprido e tem listas verrugosas nas coxas traseiras. Essa confusão provocou um redirecionamento em minha vida, que vou explicar. Juntos comigo, no mesmo quarto do hospital, estavam mais três militares do meu quartel. Um deles era cabo graduado. Excêntrico, falastrão e gozador com os outros. Resolveu tratar-me por “sapo-boi”. Disse-lhe que tinha número e nome de guerra. Que os usasse quando a mim se dirigisse. Retrucou, alegando ser o único graduado ali e chamar-me-ia como quisesse. Discordei. Senti-me prejudicado moralmente. Se fosse “sapo-cururu”', até não me incomodaria, tanto. Mas “sapo-boi”... Não! Que injustiça com os machos anuros. Espécie de mau agouro para comigo, um coelho masculino e cheio de pretensões genésicas. Acabamos por nos atracar. Dei-lhe um empurrão e ele sentiu que pra boi eu não servia. Caiu contra a parede. Quando levantou trazia um coturno com bico ferrado. Jogou-me o braço com aquele calçado e eu me esquivei instintivamente, deixando o meu braço com o punho fechado no ar. Resultado: Abrira outra boca em sua bochecha, na junção dos maxilares. Sangueira abundante. Avisados, imediatamente, compareceram enfermeiros e um oficial médico que me rotulou de ''monstro''. A seguir fui transferido e mantido isolado numa solitária gradeada. No dia seguinte era transferido para meu quartel. Fora recomendada a pena de trinta dias de reclusão, por agredir um superior. O Coronel comandante, que me elogiara no Bivaque, ouviu minha versão. Na 4ª parte do próximo boletim, minha punição aparecia comutada para trinta dias de detenção na Unidade, à disposição da Enfermaria Regimental. Aí acabei de me recuperar. Durante esse período, fui liberado três vezes para ir à cidade ver minha família. Nunca mais freqüentei a 4ª parte do boletim. O preço foi desligamento do curso de formação de cabo. Motivos: Falta de aproveitamento e a punição sofrida.

Final de ano chegou. Natal e ano novo. Eu de plantão na escala de serviços, para compensar os colegas que tinham ganhado dispensa temporária. E mais alguns cobres faturados, às custas dos folgados. Finalmente chegava 1962 cheio de promessas. Eu e um colega de Enfermaria Regimental iríamos continuar nossos estudos. Ele iniciaria cursando o colegial científico e eu cursaria o terceiro ginasial na cidade de Santa Maria, distante onze quilômetros de nosso quartel. Enfrentaríamos o expediente durante o dia. À noite seríamos dispensados para irmos assistir aulas. Nos fins-de-semana e feriados dobraríamos serviço. Íamos a pé para a cidade todos os dias. Por vezes conseguíamos carona na velha e conhecida viatura do pão. Desta maneira venceríamos os primeiros cinco meses daquele ano. Havia no ar, uma sensação de “estar tudo bom demais pra ser verdade”. E veio outro susto, desta vez por excesso de cuidado profissional. Ocorreu um “sururu” num dos banheiros coletivos de nosso alojamento. Um dos envolvidos teria escorregado e batido com a testa numa grade de madeira, resultando-lhe um profundo ferimento no supercílio. Banhado em sangue e desarvorado buscou a enfermaria 1. Era anoitecer de sábado. Eu estava de plantão. Tomei a iniciativa como em outros tempos, no Cacequi. Não podia usar anestésico. Já era de uso e controle de receituário médico. O oficial-médico só na segunda-feira. Ponderei a situação para o desesperado colega ferido. Por fim alvitrei: Se aguentasse no “osso-do-peito”, eu suturava seu ferimento. Concordou. Apanhei agulha e fio cirúrgico e me apliquei. Um companheiro auxiliava limpando o sangue. Após Juntar os lábios da ferida com oito ou dez pontos em xis, banhei com solução de merbromino (mercúrio-cromo) e protegi com atadura de gaze. Injetei-lhe uma penicilina, ofereci-lhe comprimidos de aspirina e o deixei em observação na enfermaria. Na manhã seguinte verifiquei estar tudo a contento. O paciente dormira como um anjo. Tão logo chegou o oficial-de-dia à unidade, no domingo, apresentei-me e relatei o ocorrido. Ameaçou-me severamente. Eu apodreceria no xilindró se o ferido tivesse infecção ou morresse de tétano. Agarrei-me com todos os santos, com todas as orações que conhecia. Não eram muitas. Mas funcionaram. Na segunda-feira o pós-operado estava bem “gardelão” quando chegaram o oficial-médico e os demais enfermeiros graduados. Não fui elogiado. Nem processado. Dias mais tarde, o “xirú militar” estava novamente em atividade. Nem uma “febrícola” tivera. Ufa! Graças a Deus! Ainda falarei nesse vivente, mais adiante. Vale lembrar que recebêramos todas as vacinas a que tínhamos direito. Inclusive contra o tétano.

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