quarta-feira, 30 de setembro de 2009

RETORNO AO QUOTIDIANO NA CASERNA.

Uma semana de folga nos foi concedida para descanso e matar a saudade da família. Tudo estava como deixara, antes de eu partir para as inusitadas 'manobras' de que acabara de chegar. Reapresentei-me antes. Precisava faturar uns trocados tirando serviço de plantão, ou guarda pra algum companheiro disposto a pagar pra se esquivar da escala. Os treinamentos foram retomados. Exercícios físicos. Ordem Unida. Aulas e palestras sobre civismo, regulamento disciplinar do exército e dos serviços em geral. Após almoço e jantar se jogava ping-pong. Os que apreciavam costumavam disputar uma “pelada”. Nessas oportunidades um ou outro graduado, cabo ou sargento, era convidado a reforçar um dos times. Às vezes os dois lados recebiam reforço. Aos seis meses de caserna fomos dados por 'prontos'. Apenas ratificamos o juramento à pátria, os que haviam integrado o contingente do Abivaque, que estavam mais experientes e maduros. Da maioria desses, saíram candidatos para freqüentar o Curso de formação de Cabo. Foram selecionados três por companhia. Eu era um deles. Sobrecarregava nossa rotina. A cobrança também aumentou sobre nossos atos.

Repentinamente, um surto de parotidite epidêmica, vulgarmente conhecida por caxumba, me enviou para o Hospital da Guarnição Militar de Santa Maria- HGUSM. Ali estive de 'molho' por quase duas semanas. Minhas parótidas salivares inflamaram e aumentaram de volume. Tal foi o efeito que fiquei ainda mais parecido com um “sapo-cururu” albino. Não confundir com o “sapo-boi” que é mais comprido e tem listas verrugosas nas coxas traseiras. Essa confusão provocou um redirecionamento em minha vida, que vou explicar. Juntos comigo, no mesmo quarto do hospital, estavam mais três militares do meu quartel. Um deles era cabo graduado. Excêntrico, falastrão e gozador com os outros. Resolveu tratar-me por “sapo-boi”. Disse-lhe que tinha número e nome de guerra. Que os usasse quando a mim se dirigisse. Retrucou, alegando ser o único graduado ali e chamar-me-ia como quisesse. Discordei. Senti-me prejudicado moralmente. Se fosse “sapo-cururu”', até não me incomodaria, tanto. Mas “sapo-boi”... Não! Que injustiça com os machos anuros. Espécie de mau agouro para comigo, um coelho masculino e cheio de pretensões genésicas. Acabamos por nos atracar. Dei-lhe um empurrão e ele sentiu que pra boi eu não servia. Caiu contra a parede. Quando levantou trazia um coturno com bico ferrado. Jogou-me o braço com aquele calçado e eu me esquivei instintivamente, deixando o meu braço com o punho fechado no ar. Resultado: Abrira outra boca em sua bochecha, na junção dos maxilares. Sangueira abundante. Avisados, imediatamente, compareceram enfermeiros e um oficial médico que me rotulou de ''monstro''. A seguir fui transferido e mantido isolado numa solitária gradeada. No dia seguinte era transferido para meu quartel. Fora recomendada a pena de trinta dias de reclusão, por agredir um superior. O Coronel comandante, que me elogiara no Bivaque, ouviu minha versão. Na 4ª parte do próximo boletim, minha punição aparecia comutada para trinta dias de detenção na Unidade, à disposição da Enfermaria Regimental. Aí acabei de me recuperar. Durante esse período, fui liberado três vezes para ir à cidade ver minha família. Nunca mais freqüentei a 4ª parte do boletim. O preço foi desligamento do curso de formação de cabo. Motivos: Falta de aproveitamento e a punição sofrida.

Final de ano chegou. Natal e ano novo. Eu de plantão na escala de serviços, para compensar os colegas que tinham ganhado dispensa temporária. E mais alguns cobres faturados, às custas dos folgados. Finalmente chegava 1962 cheio de promessas. Eu e um colega de Enfermaria Regimental iríamos continuar nossos estudos. Ele iniciaria cursando o colegial científico e eu cursaria o terceiro ginasial na cidade de Santa Maria, distante onze quilômetros de nosso quartel. Enfrentaríamos o expediente durante o dia. À noite seríamos dispensados para irmos assistir aulas. Nos fins-de-semana e feriados dobraríamos serviço. Íamos a pé para a cidade todos os dias. Por vezes conseguíamos carona na velha e conhecida viatura do pão. Desta maneira venceríamos os primeiros cinco meses daquele ano. Havia no ar, uma sensação de “estar tudo bom demais pra ser verdade”. E veio outro susto, desta vez por excesso de cuidado profissional. Ocorreu um “sururu” num dos banheiros coletivos de nosso alojamento. Um dos envolvidos teria escorregado e batido com a testa numa grade de madeira, resultando-lhe um profundo ferimento no supercílio. Banhado em sangue e desarvorado buscou a enfermaria 1. Era anoitecer de sábado. Eu estava de plantão. Tomei a iniciativa como em outros tempos, no Cacequi. Não podia usar anestésico. Já era de uso e controle de receituário médico. O oficial-médico só na segunda-feira. Ponderei a situação para o desesperado colega ferido. Por fim alvitrei: Se aguentasse no “osso-do-peito”, eu suturava seu ferimento. Concordou. Apanhei agulha e fio cirúrgico e me apliquei. Um companheiro auxiliava limpando o sangue. Após Juntar os lábios da ferida com oito ou dez pontos em xis, banhei com solução de merbromino (mercúrio-cromo) e protegi com atadura de gaze. Injetei-lhe uma penicilina, ofereci-lhe comprimidos de aspirina e o deixei em observação na enfermaria. Na manhã seguinte verifiquei estar tudo a contento. O paciente dormira como um anjo. Tão logo chegou o oficial-de-dia à unidade, no domingo, apresentei-me e relatei o ocorrido. Ameaçou-me severamente. Eu apodreceria no xilindró se o ferido tivesse infecção ou morresse de tétano. Agarrei-me com todos os santos, com todas as orações que conhecia. Não eram muitas. Mas funcionaram. Na segunda-feira o pós-operado estava bem “gardelão” quando chegaram o oficial-médico e os demais enfermeiros graduados. Não fui elogiado. Nem processado. Dias mais tarde, o “xirú militar” estava novamente em atividade. Nem uma “febrícola” tivera. Ufa! Graças a Deus! Ainda falarei nesse vivente, mais adiante. Vale lembrar que recebêramos todas as vacinas a que tínhamos direito. Inclusive contra o tétano.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

INCERTEZAS NO ABIVAQUE !

Tanto quanto possível, serei moderador com respeito ao que vivenciei, juntamente com os demais companheiros de caserna, digo, companheiros de estábulos, em geral. E parceiros de ambulância, em particular. Já referi, que por algum tempo fomos vizinhos de alguns bovinos. Possivelmente alguns expoentes de raças que iriam ser exibidos na exposição agropecuária de 1961. Ou eram os remanescentes daquela exposição. Em qualquer das hipóteses, o acontecimento máximo da economia primária do Rio Grande do Sul estaria prejudicado naquele ano. Fato é que convivemos, lado a lado, com os 'indiferentes' quadrúpedes por algumas semanas. Durante as quais, cada instante, de nossas vidas, era marcado por incertezas. Aos poucos recebíamos informações, na maioria, desencontradas. Ora éramos informados que nosso comboio seria desembarcado e avançaria por terra para o centro do país para combater forças militares que de lá se deslocavam para o sul. Às vezes soava o 'alarma' e as luzes ainda acesas, eram apagadas. Lá pelas tantas retornava a claridade.

- Ufa! Passou! Fora alarme falso. Não ocorria tumulto. Inadvertidamente eram realizadas 'formaturas-relâmpagos' para testar o condicionamento da tropa. Humana, claro! Vez que os quadrúpedes a tudo presenciavam, sempre remoendo. Apáticos.

Ligação telefônica com Santa Maria, não consegui uma só vez. Assim não tinha informações concretas, nem de minha família. A tensão nervosa e psicológica era constante. Tanto que certa manhã o ordenança apareceu na enfermaria do estábulo, digo, enfermaria de campo improvisada no estábulo. Fora buscar um remédio para o nosso Comandante, Coronel Ito do Carmo Guimarães que estava com uma tremenda cefaléia, dor de cabeça mesmo. O oficial médico não estava ali, no momento. Após uma rápida vasculhada, o sargento enfermeiro concluiu que teria que ser a 'velha sulfa de guerra', usada tanto pra unha encravada como pra queda de cabelo.

Argumentei:

- Não sargento... Temos Dipirona do LAFE, Laboratório Farmacêutico do Exército, disse. E fui apontando onde se encontrava e incumbido de levar o analgésico ao importante paciente. Aproximei-me do dito cujo, 'colei os cascos' e perfilado, em continência, apresentei-me:

- Soldado 796, ex-meeiro, auxiliar de farmácia e atual padioleiro do SSR desta Corporação. Trago-lhe este medicamento enviado pelo sargento Fulano. Tome um agora. Se necessário tome outro mais tarde. Pedi licença para retirar-me.

- Permissão concedida, disse ele. Bati os cascos novamente, fiz “meia volta vou ver” e com o pé esquerdo, rompi a marcha de retorno pra enfermaria improvisada. Na passagem, sempre teso, observei de “soslaio”, uma vaquinha ruminando e ainda indiferente a tudo. Recebi o olhar de aprovação do graduado enfermeiro e colega. Poucos dias depois o boletim de campanha em sua 4ª parte - Justiça e Disciplina, publicava um “elogioso reconhecimento” ao meu desempenho como padioleiro. Outro viria. Considerando agora minha apresentação com roupas e coturnos sempre impecáveis. Olha aí! Novamente o sucesso a testar minha “pequenitude”.

Aos poucos a “cortina de fumaça” se ia dissipando. A julgar pelas folgas que ganhávamos, e durante as quais explorávamos as ruas de Porto Alegre, desde onde estávamos 'acantonados' até o centro. E vice-versa. Embora muito próximo, jamais me ocorreu conhecer o estádio do imortal tricolor GFBPA. Até mesmo pela grana muito curta. Tinha acabado o dinheiro ganho no Cacequi. Os primeiros soldos eram pra pagar o saco de roupas, calçados e artigos de higiene, já recebidos. Somente no mês seguinte, outubro, eu veria os “cobres”. Algum plantão, ou “guarda de dia”, pra um ou outro colega da cidade, minorava minha “pindaíba”. E com um bom saldo na poupança, em Cacequi. Oh, louco!

Lá pelas tantas um grande bulício, no bivaque, anunciou que começaríamos a regressar no dia seguinte. Dito e feito. Os carros blindados tinham permanecido nos vagões férreos. A ambulância, os Jeeps com cisternas e outros reboques não deram muito trabalho. Como inúmeras vezes, ouvira mamãe dizer quando voltávamos das fazendas onde íamos vender mantimentos: "Pra querência os bois vão com a regeira solta”. O retorno embora rápido, não deixou de nos pregar peças, principalmente pra mim que estava numa peladura de fazer dó. Quem tinha reservas, comprava nas paradas e estações férreas, tudo o que ofereciam pra comer; desde pastéis até embutidos, bolos fatiados, frango e peixe frito. Tudo que pudesse aplacar a fome. Eu só comia com os olhos. Viajava ao lado de um primeiro sargento que “despacito” ia fazendo desaparecer em delicadas rodelinhas, uma tripa de salame. Eu mantinha o olhar cristalizado no “toco” de embutido. Mal me continha. O sargento “se tocou”. Indagou se eu aceitava um pedaço daquele alimento, ao tempo em que me esticava a “xerenga” com uma fatia que não devia ser mais espessa que uma moeda de um real.

- Afirmativo! Respondi e passei a mão na “moedinha” já com a boca escancarada. Joguei direto “nos peitos”, digo, na goela. A “moedinha” passou direto e... –“Glup”! Antes que pudesse agradecer, batia na parede do estômago. Fiquei com os olhos que era um “Cururu” esperando por outra. Não veio, pois o toquinho restante tinha sido deglutido pelo “generoso” sargento. Com esse lanche enfrentei e conclui o restante da viagem até Santa Maria. Claro que ainda recebemos uma refeição de café com leite, pão e mel. A retirada dos blindados dos vagões férreos não acompanhei. Ocupei-me da ambulância e demais equipamentos pertinentes ao SSR do qual era empregado. Ao anoitecer do dia em que chegamos de retorno, fomos liberados para visitar nossos familiares.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

III BCCL NA LEGALIDADE

Começamos logo nas lides militares. Alvorada às 6 da manhã. Café às sete e formatura às 8 horas. Em seguida era feita a chamada com a leitura do boletim interno. A publicação de tudo quanto acontecia no quartel: Incorporações, promoções, deserções, transferências, elogios, castigos e o mais que fosse registrado na vida dos militares convocados e de carreira. A Companhia de Serviços - CS entraria com três enfermeiros padioleiros, convocados para integrar a Enfermaria Regimental. Ficaríamos a disposição permanente daquele serviço. Os convocados se revezavam nas lides de saúde e nas instruções de treinamento de ordem unida. Às vezes ficávamos horas marchando com um fuzil até dominarmos a maneira de o portarmos corretamente nas várias posições. Os filmes com temas de guerra mostram exaustivamente, como é a disciplina na caserna. Poupar-me-ei de enfadonhas explicações.

Onze horas o corneteiro tocava ''debandar'' e a seguir ''rancho''. Duas horas para almoço e descanso. O Reinício do expediente era à uma hora. Às cinco horas, momento da debandada. Novo toque anunciava o 'rancho'. Às dez da noite, vinha o ''silêncio”. Na manhã seguinte reiniciava toda rotina. Para os 'empregados' na enfermaria regimental, nas repartições burocráticas, oficina de manutenção de máquinas, a rotina de instruções era dupla, embora mais leve, pois não participavam de determinadas escalas. Outros até dobravam serviço por ter que enfrentar várias escalas. Nós do Serviço de Saúde RegimentalSSR, quando tirávamos serviço na nossa Companhia, não trabalhávamos na enfermaria. Com o tempo ficamos a disposição da mesma.

Não levou muito tempo e mostrei minhas habilidades. Curativos em escoriações comuns e injeções era comigo mesmo. três graduados e um oficial completavam o quadro de seis elementos no SSR. A rotina seguia a 'toque-de-caixa'. Vez por outra aqueles que moravam na cidade eram liberados. Quando não, ficavam tirando “guarda”, nos vários postos existentes e nas companhias. Certa vez fui a cidade e ouvi de meu irmão padeiro que a 'coisa estava fedendo'. O então governador Leonel Brizola estivera em Santa Maria e ameaçara disponibilizar o III Exército e com ele, garantir a posse de seu cunhado João Goulart, vice do presidente Jânio Quadros. Com a renúncia deste, legalmente, assumiria o nosso Jango. A mídia do centro do país, setores das forças armadas, e outras 'forças ocultas', no dizer de Jânio, não queriam deixá-lo assumir, por entenderem que além de populista, Jango estaria comprometido com esquerdistas de Cuba, URSS e China. Brizola queria que a lei constitucional fosse respeitada.

Os quartéis estavam intimando todos os militares a se apresentarem imediatamente em suas corporações. Interrompi minha folga e me apresentei. Na manhã seguinte a rotina no quartel era marcada por músicas marciais e hinos que exortavam ao Civismo. Ao 'toque de recolher', ninguém mais podia sair do quartel. Era o Estado de Alerta. Instruções estavam aceleradas. Por duas semanas ninguém saía nem entrava no quartel. No nosso era assim. Nos demais não seria diferente. Muito “disse-me-disse”. Nós, recrutas não sabíamos nada. Ligar rádios dava punição com reclusão no quartel. Lá pelas tantas fomos selecionados e reunidos numa área especial de instrução. Sempre as músicas marciais e hinos. Fizemos um pré-juramento à Bandeira e a Pátria. Alegação: Não dava tempo para esperar a época regulamentar para aquele procedimento formal. Nosso deslocamento para Porto Alegre poderia ocorrer a qualquer instante. Alerta geral e prontidão nos quartéis. Os direitos constitucionais na carta-magna tinham que ser respeitados. Jango tinha que assumir. E assumiu realmente. Mas para isso foi votado e aprovado o parlamentarismo. Vale dizer que Jango não poderia governar em meio à bagunça política criada pelas inúmeras correntes partidárias. Por deferência especial do oficial-de-dia, consegui dar um pulo em casa. Fui na viatura do rancho buscar pão. Minha mãe estava apavorada com o noticiário. Tentei acalmá-la. Na saída ela viu meu capacete e cinturão deixados entre as flores. Pediu explicações. Respondi que era rotina naquela situação. Retornei pela madrugada, antes do corneteiro tocar ''alvorada''.

Mais alguns dias. Fins de julho, início de agosto de 1961. Debaixo de chuva e frio, como tal nem na Fazenda Primavera lembrava ter enfrentado. Que trabalheira colocar aqueles blindados 'leves' nos vagões da VFRGS. Se os 'leves' pesavam que nem consciência, como seriam os pesados Sherman, que diziam ser usados no centro do país. No dia da partida do comboio militar-ferroviário, minha mãe não compareceu. Estava só minha Irmã-religiosa, que por essa época já se encontrava em Santa Maria. Tínhamos conseguido poupar nossa mãe de ter maiores preocupações. O resto da tropa ficara no III-BCCL, assim ela pensou que eu estava lá. O deslocamento da tropa embarcada nos vagões da VFRGS durou cerca de três dias. Debaixo de chuva, frio e vento. Nesse período tomamos uma refeição quente de arroz com carne guisada. A cozinha de campanha daquela expedição militar não fora contemplado com logística adequada. Ainda bem que fora uma mobilização fajuta. Nós convocados, não sabíamos disso. Chegando em Porto Alegre fomos imediatamente trasladados para o então Parque de Exposição Agropecuária, situado no bairro Menino-Deus, bem próximo ao recém inaugurado estádio Olímpico do GRÊMIO FUTEBOL PORTO-ALEGRENSE. Hoje com o nome de Parque de Exposição Assis Brasil ele está magnificamente localizado no município de Esteio, na área metropolitana de Porto Alegre.. Estendíamos mantas sobre a palha que servira de cama aos animais, e ali dormimos. Ficamos abivacados, literalmente, por cerca de trinta dias. A comida, embora racionada, não faltou. Às vezes dava ganas de transformar alguns bovídeos remanescentes, em churrasco.

ENVERGANDO A GLORIOSA VERDE-OLIVA.

Em meados de junho de 1961, eu deixava Cacequi, já com saudade. Aproximadamente às 14 horas. Era mui raro o trem para Santa Maria partir no horário. Especialmente nas segundas-feiras e nos sábados devido às longas 'despedidas', se me faço entender. Alguns mais próximos, os filhos de meu colega na farmácia, muito amigos e 'quase-irmãos' por cerca de um ano também foram à plataforma da estação me desejar sucesso na empreitada. Alguns até diziam: "Até sábado! Eles vão te mandar de volta". No embarque não faltou uma ''aparente querendona” para conferir, afinal, no fim-de-semana anterior já havíamos 'fortalecido nossas intenções', por conta do próximo dia dedicado a Santo Antônio.
Fato é que o maria-fumaça, lenta mas resolutamente, começou a deixar a gare da estação férrea do Cacequi. Nele retirava-se um ex-meeiro. O mesmo que dez anos atrás, ali chegara, vestindo calça-curta 'tobiana' e 'chancletas' carcomidas no 'garrão'. Agora já guindado a auxiliar de farmácia, seguia todo enfeitado, que nem peru no Natal. Com promessa de alguma coisa mais no 'porvir', parti, 'contrariado que nem gato a cabresto'. Não tinha retorno. A Pátria não podia prescindir de seus filhos como Reservistas. Hoje é diferente. Ela até acena com a promessa de brilhante e rentável carreira. Olha aí o 'herói da trama', mais uma vez.
Com as idéias todas em rebuliço, dei com os costados na estação férrea de Santa Maria da Boca do Monte. O irmão mestre-padeiro me esperava, sempre muito solidário. No exercício da fraternidade sempre foi exemplar. Mamãe e o irmão Dartagnan estavam ótimos. A Irmã Religiosa estava por juntar-se a nós. Quanto ao quartel, “Que nada... Vai dar tudo certo, como deu pra mim”, dizia o mano. Ledo engano como veremos mais adiante. Muitos 'pepinos', 'abacaxis' e 'bananas verdes' tive que 'descascar' ou deixar 'amadurecer' antes de consumi-los. Mas com as Graças de Deus, aos poucos as coisas se iam resolvendo. Cacequi já era página virada. A preocupação era com a apresentação ao Serviço Militar. Começaria no dia seguinte.
Da estação férrea, seguimos imediatamente para casa de meu irmão padeiro. Mamãe veio nos encontrar. Estava com bom aspecto físico. Embora com o semblante ainda um pouco pesado. Mas a isso nos acostumaríamos por nossas vidas em fora. Li certa vez que Jesus, o Proto-Mártir da Cristandade, não costumava sorrir. Os indígenas também não ostentavam alegria. É verdade que uma existência pobre pode deixar-nos acabrunhado. Não era o caso de mamãe, pois ela jamais perdeu as esperanças. Lutou tenazmente enquanto viveu, pela realização dos filhos, por meio do trabalho honesto e perseverante. Foi mais ou menos isso que eu entendera em suas não muitas palavras. Na avaliação dela, estava tudo em seu lugar. De tempos em tempos recebia alguma notícia dos demais irmãos. Aferrara-se ainda mais sua religiosidade. Agora com o incentivo da Rainha Medianeira de Todas as Graças.
Ao anoitecer o irmão mestre-padeiro saiu para seu trabalho noturno, na panificadora. Ainda com o coração despedaçado por ter deixado o Cacequi, tratei de refazer-me para o dia seguinte. Tomei a benção de minha mãe, como de costume, e me fui ao 'berço'. Adormeci e 'dormi como uma pedra'. Seis horas da manhã fui acordado pelo irmão padeiro que acabara de voltar do trabalho. Saltei, atirei um pouco d'água fria nas fuças e chispei pra o local determinado pela circunscrição militar. Caminhões do exército aguardavam já quase repletos. Mais uns minutos e a 'carga' estava completa. Rumamos pra fora da área urbana. Daí a algum tempo o comboio adentrou um portão que dava acesso a inúmeras edificações muito sólidas e bem conservadas, aparentemente novas. Estávamos na 'antiga aviação'. Mais precisamente, no 3º BCCL - Terceiro batalhão de carros de combates leves. Ali seria, para muitos daqueles jovens, a moradia nos próximos doze meses. Alguns seriam recusados. Outros, ainda, se reengajariam, ao término do serviço militar, para o qual foram legal e regularmente convocados.
No mesmo dia fiquei sabendo que não seria 'mandado de volta' pro Cacequi. Organizados em filas que se iam formando por ordem alfabética. Uma fila ao lado da outra. La pelas tantas: Sou eu! Gritei ao ouvir 'berrarem' meu nome, bem ali, próximo.
- Sabe ler e escrever teu nome?
- Sei! Respondi com meia-voz, pois recordara quando meu antigo mestre-boticário fizera a mesma pergunta, e a seguir dera-me um balde com água, sabão, vassoura e pano pra iniciar a primeira aula de aprendiz.
- Que mais tu sabes fazer?
- Faço injeções e curativos. Respondi.
- Vai pra ali. E apontou pra um lado onde já estavam dois ou três. Sendo que um deles tinha umas 'cobrinhas' na manga da camisa, mais ou menos à altura do braço, logo abaixo do ombro. A seguir mais dois se juntariam ao nosso pequeno grupo. Estava selecionado o pessoal que serviria no Serviço de Saúde Regimental. Não estava mau, pro primeiro dia. Uma certeza me bateu: Eu não seria devolvido pro Cacequi. Somente muito tempo depois, descobri que minha experiência naquela querida terra cumprira-se.

domingo, 27 de setembro de 2009

CACEQUI - ''CIDADE CHAVE-DA FRONTEIRA''

Tenho muito carinho por todas as cidades nas quais permaneci, desde poucos dias a alguns anos. Mas em Cacequi terei deixado a pontinha da cauda. A julgar pelo restante do 'rudimento' apendicular traseiro desse 'roedor', popularmente conhecido por "coelho", mas que a ciência resolveu denominar excenticamente por Oryctolagus Cuniculus. Por esse motivo, principalmente, procurarei consultar mais demoradamente minhas reminiscências a seguir. No momento, vou recordar os dias e meses restantes que vivi no já distante 1960, quando completei dezoito primaveras longe da minha família; naquela 'paróquia' de tão meiga memória. Continuei desempenhando o ofício que ali aprendera e estava abraçando. Amigos e admiradores não faltavam. Entre eles contava vários professores do ginasial, e mesmo do velho e glorioso Grupo Escolar Estadual Hermes da Fonseca, como carinhosamente era conhecido o prédio que acolhia o curso primário, em três turnos diurnos e um noturno; e também o ginasial que ia já para a terceira série. Participava de reuniões da Sociedade São Vicente de Paula, que havia fundado juntamente com mais seis ou sete membros de escola. Entre eles o vigário pároco Quirino Bin e o diretor do Ginásio Cacequiense, brilhante professor de matemática e saudoso amigo Antoninho Araujo..

Após a missa dominical, ou em dias santificados, em que estava de folga, eu ia para o Clube Comercial. Ajudava na secretaria no que pudesse. Quando não necessário, ficava a treinar 'bolão', variedade de boliche, ou então ia dar ou levar uns 'foguetaços' no velho ping-pong. Almoçava no clube mesmo. À tarde, frequentemente, nos deliciávamos nos bingos dançantes, animados pela música dor-de-cotovelo da velha-guarda que naqueles dias já esboçava sinais de perda de fôlego e a jovem-guarda começava a mostrar sua cara. Ambas eram reproduzidas nos 'vovôs’ de 78 rpm, de vinil, em maravilhosas eletrolas e vitrolas.

Veio o Natal que passei com a família em Santa Maria. O ano novo me pegou no batente, na farmácia!. Mais um pouco e já era o carnaval de 1961! Glorioso!. Reencontro com os amigos. Um deles era ''bicho'' da Faculdade de Medicina da nascente U.F.S.M., PRIMEIRA UNIVERSIDADE FEDERAL DE INTERIOR em nosso País. Organizamos um bloco carnavalesco com esses e outros companheiros residentes na cidade. Um baita bloco, com vinte pares. Era o bloco da TDB - Turma-do-Barulho. A 'nata' da juventude cacequiense, então. Foi uma 'folia' de arromba!. Marcou época. Deu até um ou dois casamentos que perdi de vista. Não ocorreu um mínimo desentendimento, embora estivéssemos presentes, todos os envolvidos no incidente em que o ''jeepeiro'' me jogara contra o muro, meses antes. Afinal éramos amigos. Muitos daqueles companheiros ainda vivem, perdidos em outros rincões Gaúchos e mesmo na cidade, embora há muito não os veja. E se encontrar algum na certa não reconhecerei. Outros, 'abanando o toso' nos deixaram na saudade. Passaram pra outra dimensão melhor, decerto. O carnaval foi-se e arrastou a quaresma com Semana-Santa e Páscoa sem maiores novidades. De um salto, estávamos em junho e eu deveria me apresentar para resgatar meu compromisso com a Pátria. Disso falo depois. Agora vou falar um pouco da história do Cacequi. Um pouco só, para aplacar a saudade do lugar onde encontrei grandes amigos e mestres que não dão mais em 'touceira'.

sábado, 26 de setembro de 2009

DANDO RÉDEAS PRA 'GATEADA' !


Lá pelas tantas caiu a ficha! Foi numa época em que modestas companhias teatrais e circos com várias atrações faziam escala no Cacequi. Francisco Alves, Carmem Miranda, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, e até Carlos Gardel; entre muitos outros, eram imitados na ribalta dos palcos cobertos com lona. Alguns domadores de leão "mui fajutos”, já na época. Dançarinas, belíssimas, por sinal. Trapezistas, mágicos, imitadores e até lutadores de boxe. Creio que influenciado por estes últimos, é que andei querendo me iniciar no pugilismo.

Recobrei o juízo e concentrei a atenção na farmácia. Afinal daí saía parte de nossa subsistência. Meu irmão mestre-padeiro tinha recebido 'baixa' com Certidão de Reservista de Primeira Categoria. Havia terminado seu tempo de serviço no Exército, onde dera show na padaria da caserna. Tanto que o convidaram a reengajar-se. Declinara a aceitar. Tinha emprego garantido. Retornou e reassumiu seu posto na antiga padaria. Novamente respiramos um pouco mais aliviados, pois esse irmão era muito solidário com a família. E o seria para o resto de nossas vidas, como veremos mais adiante. Tão comedido, sempre fora, que até alguma economia tinha feito no quartel. Em que pese o miserável soldo pago aos convocados.

Com meu 'caixa' um pouco mais folgado passei a fazer algum investimento. Incrementei o guarda-roupa, comprei uma bicicleta de segunda mão, muito 'buena', das importadas, marca Axel. Com ela eu cortava as ruas como um corisco. Me fez ganhar várias corridas apostadas sempre "às brincas" conforme o linguajar da época. Isto motivado por estar eu ressabiado de perder no jogo de 'bolitas' quando me 'depenavam' até a 'jogadeira'. Pra quem não foi 'guri', esta é a 'bolinha-de-ouro', com a qual se procura 'acertar' a bolinha adversária. "Às devas" ou apostas sérias, nunca mais. Doravante apostaria no trabalho e estudo, somente. De vez em quando um banho no Rio Cacequi, com os amigos.

Numa dessas oportunidades decidi ser torcedor do 'imortal tricolor' dos pampas. Meus amigos eram torcedores do arqui-rival. Assim, o glorioso Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense naquela tarde domingueira ganharia mais um torcedor 'pé-quente' e também mais um ouvinte do clássico Gre-Nal. Vale dizer que o jogo fora escutado em um receptor transistorizado com ondas AM e de 49 metros, de minha propriedade. Sintonizado nas ondas da jovem e prestigiosa Rádio Guaíba, na voz metálica do saudoso Pedro Carneiro Pereira no comando da "jornada esportiva". Estaria secundado pelo não menos famoso Amir Domingues, que por sinal, diziam, tinha parentes naquela cidade.

O aparelho era mais um meu investimento. Marca Teleunião. Luxuoso revestimento de couro natural, fabricado em Porto Alegre, nos áureos tempos. Depois o mercado nacional seria pulverizado com miniaturas japonesas e de outras procedências, em detrimento da indústria sulina e nacional. Com fechamento de postos de trabalho e inibição da arrecadação de impostos. Era o último grito. Orgulhoso, eu desfilava com o radinho de goela aberta a todo volume. De manhã cedo, em direção ao trabalho na farmácia, eu fazia algumas pessoas abrir a janela para conferir. Geralmente era o Cesar Ladeira na Rádio Record de SP conclamando os sertanejos a ouvir Silvio Caldas. Outras vezes era o Barros Alencar na Rádio Tupy do Rio de janeiro, "O Cacique do Ar". Fiori Gigliotti, na Bandeirantes de SP, comandava o futebol. Na Farroupilha, de Porto Alegre, Luiz Menezes e Darci Fagundes comandavam “O Grande Rodeio Coringa” sob a chancela da São Paulo Alpargatas.

Por sinal as famílias se reuniam, às vezes, para ouvir esse programa tradicionalista. Uma das grandes atrações era o seu Amaranto Pereira, lá de Encruzilhada do Sul que fazia um baita sucesso com seus causos. Um desses “verídicos”, no dizer dele, referia-se ao motivo de ter “queimado o assado”, ou, chegado tarde ao "Grande Rodeio Coringa", por causa de um vento muito forte, daqueles de “trocar burro de invernada”! Esse vento era o culpado por sua impontualidade. Tinham, ainda, os programas 'Amanhecer na Querência' e 'Violeiros e Cantadores', dirigidos pelos cantores-apresentadores 'Cardeal-de-Ouro' e seu companheiro, formando a dupla sertanejo-gaúcha "Cerejinha-e-Santinho" na rádio Imembuy, de Santa Maria da Boca do Monte. Isto é uma pálida reminiscência, apenas, dos gloriosos dias no final da década 1950/60. Vou tomar um gole de "amargo bem cevado" pra me abrir mais um pouquinho a cachola por causa da “relancina” que começa a "manquejar"!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

OUTRO PUGILATO!

Volta e meia uns “cuscos” me atacavam na frente de determinada casa. Alguém me orientou a abaixar e simular que ia tomar uma pedra ou pedaço de pau. Tal gesto assustá-los-ia. Assim procedi. No ataque seguinte, abaixei “de mentirinha” e um daqueles “cuscos” me surpreendeu pela retaguarda e mordeu um dos grande-glúteos. Alguém me socorreu. Dali em diante andava sempre com uma vara meio reforçada na mão. Vai daí, encontro outro menino mais alto e menos “gordacho” que eu. Mexeu com meus brios e dei-lhe umas varadas nas pernas. Outro rapazote viu a cena e veio me cutucar, dizendo pra eu não surrar um mais fraco. Respondi que tinha surrado aquele e o surraria, também. O paladino se veio e nos atracamos. Murros e pontapés... Vai tabefe e vem tapona. Exaustos, sem vencido nem vencedor, separamo-nos. Muito tempo depois, já amigos e “fratelos”, lembramo-nos de tal enredo. Afirmava ele jamais ter apanhado tanto, mas também não lembrava ter batido tanto. Concordei, e, ainda hoje concordo. Ele estava próximo de cento e vinte quilos. Como iria discordar. Estávamos maduros, “afamiliados” e continuávamos bons amigos.

Não tive outras encrencas. Mas a fama ficou. Certa vez três amigos pretenderam dar-me um susto: estavam 'tripulando' um Jeep-Willys e resolveram tirar um “fininho” quando eu vinha na rua pela beira da calçada. O motorista, também meu amigo, errou o cálculo e jogou-me contra um muro. Sorte de novo! Não quebrei nada. Nem escoriações. Só a marca do pneu estepe ficara na manga de minha camisa. Levantei largando “língua de fogo” pelas “ventas”. Já estavam longe meus amigos. Ficaram “ariscos” durante um bom tempo, com medo da represália. Depois, voltamos às boas. Afinal éramos amigos. Um deles, formado médico na UFSM, lembraria o episódio, anos depois, quando tratava meus ferimentos decorrentes de um acidente de trânsito, em meu carro naquela cidade.

'VOU TE MOSTRAR QUEM É BATATÃO, SEU....

Como já referi, por várias vezes eu entendera estar sendo atingido em minha dignidade. Isto fora do trabalho ou da escola. Sabia as conseqüências que adviriam. No trabalho não havia interesse de ninguém em “cutucar a onça com vara curta”. Sabiam de minhas potencialidades. Na rua e na saída da escola não tinham essa preocupação. Alguns desafetos remanescentes do curso primário que tinham constado nas planilhas de monitor, e cujos ou melhor, "sujos" nomes eram divulgados aos professores no relatório- por vezes pretenderam “ir à forra”.

Certa vez um daqueles 'dito-sujo' alardeara no recreio para outros colegas, que na saída da aula, iria dar uma lição no "batatão". Pois era assim que os despeitados me tratavam, para me atingir. E atingiam com freqüência. Eu era mui branco mesmo. Além do mais não se conhecia batata- cor-de-rosa, ainda. Preparei-me psicologicamente para o embate. Seria travado num “campito” próximo dali. Como disse, nas dependências da escola, era “suspensão” na certa. E isso não ficava bem pra um monitor e aprendiz de boticário. O desafeto era bem mais “avantajado”, de coloração “acobreada-suja”. Era filho de colonos de origem alemã, queimado do sol e um tanto impregnado com terra vermelha, comum naquela região.

O rapagão, tão logo chegamos no dito campinho, atacou-me com sua maleta escolar. Por sorte me esquivei. Um torcedor ,ali perto informou: cuidado! Ele tem parafusos na maleta ! Nem deu tempo pra agradecer e já era visado por novo “Vapt” da maleta. Outra vez a sorte da esquiva. Mas maleta com parafusos pesava muito e desequilibrava meu agressor. Numa daquelas, após nova esquiva e novo desequilíbrio, saltei em cima do dito cujo. Ele soltou a maleta e se veio “espumando”. Sorte novamente, acertei em cheio dois “diretos” nas fuças do fulano. Começou a jorrar uma sangueira. O meninão se assustou e desistiu. Gritei-lhe: “Batatão não, seu ...!!!

E fui aclamado vencedor por meus pares. Afinal, eu era aluno-monitor e aprendiz de boticário. Minha fama aumentava, agora até como pugilista. Em casa, com os punhos todos sujos de sangue, tive que dar explicações para minha mãe. Só não apanhei pelo motivo de estar com minha cara limpa. Mas tive que prometer não fazer mais rusga com ninguém. Levei algum tempo para cumprir tal promessa, como ainda veremos no futuro.

...AINDA O APRENDIZ ...

Com esse desempenho, ia eu já 'livrando', literalmente, uma boa 'dianteira' entre meus colegas balconistas na farmácia. Em relação aos irmãos, alguns até já achavam que eu seria um 'doutor', a julgar pela minha performance. Aos dezesseis anos e já ganhando 'salário de maior de idade'. Por sinal, foi nessa época que abri minha primeira caderneta de poupança na agência do Banrisul, único e primeiro banco a instalar-se na “cidade-chave-da-fronteira”, que como já referi, era mui promissora naquele decênio. Dita poupança somente por mim era conhecida. É óbvio que todos entenderão os motivos, face às circunstâncias em que vivíamos. O irmão Estrabulega andava sempre 'depenado'. Socorria-se na mamãe e em mim. O pouco que pudesse eu 'poupava' no dito banco, embora sabendo que só poderia sacar com autorização de minha mãe, ou ela própria. Eu era menor de idade para tal efeito. O rancho de mantimentos era comigo. Quando recebia meu ordenado ía no armazém Araújo e comprava tudo de que estávamos acostumados a consumir. Pagava à vista e mandava um “charreteiro” (carroceiro) entregar em nossa casa. E não esquecia, então, uma boa manta de charque gordo. Ah! Separava o dinheiro para pagar o ''GICA'', pois eu estava cursando o 'Ginásio Cacequiense', do qual fui um dos alunos fundadores. Dito estabelecimento fora organizado e fundado pelo brilhante educador Ciro Cunha, na primeira série. Reencontrara antigos colegas do escolar, que concluíra um ano antes. Um que outro professor também. E assim eu recuperava um pouco do antigo prestígio. Já não era brilhante como 'antanho'. O latim do Ludus Primus e o First book of english volta meia me davam nocautes. E não era falta de empenho. La premiere année du Gymnase não me causou preocupações. Assim, consegui média sete para ser aprovado para a segunda série ginasial; que também tirei de letra nas mesmas condições. O restante do ginásio completá-lo-ia em Santa Maria, algum tempo depois, conforme veremos daqui um pouco. Fosse como tal, ia eu sendo muito bem sucedido e prestigiado. Até fora convidado para integrar o 'elenco' que iria representar um 'rudimento' de peça teatral em que fui muito aplaudido interpretando Dom João VI. Jamais representaria coisa mais hilariante! Até eu me achava parecido com o homenageado monarca. Vai daí que eu ganhara admiradoras. Uma delas jurou casar comigo, acontecesse o que fosse. Oh! Doirados anos de adolescência. O tempo, sempre o herói da trama, botou tudo em seus lugares devidos. Aquele cenário todo a me testar. E o “peito”, ainda potro, aos pinotes de alegria e arrogância, começava a tirar-me a compostura. Certa feita, “atravessei a carreta na frente dos bois”, justamente com meu novo patrão que substituíra o antigo mestre-boticário que se “mandara à la cria” pra sua terra-natal, nas bandas de Pelotas; onde ainda vive sua agora viúva, e filhas já “afamiliadas”. Fato é que o novo patrão não gostou e me repreendeu. Retruquei, já com um “pé-de-cabra” na mão. Chegaram os outros colegas e “aplainaram as arestas”. A essas alturas minha atitude intempestiva tinha preço: Uma semana de suspensão do emprego, além dos descontos no salário, e o efeito moral, que eu já começava a perceber. Foi um grande corretivo. Nunca mais me meti a abelhudo. Pelo menos com os companheiros de trabalho. Fora do trabalho e da escola, eu estava tendo dificuldade pra aceitar certas brincadeiras que julgava um insulto a um “ginasiano” e quase consagrado auxiliar de farmácia. Não me reconhecia como “qualquer um fedelho'!

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Tempos Bicudos

No capítulo anterior, abordei ligeira e superficialmente, o governo de JK com seus frutos saborosos pra uns e sem sabor ou até “amorgosos” para outros. Entre esses “outros” se encontrava nossa família. Vindos da área rural, ainda não tínhamos nos encontrado de modo satisfatório. A inflação, novidade pra nós, favorecia só os comerciantes maiores e espertos que atualizavam seus preços regularmente. Os pequenos varejistas também sofriam. Os assalariados mínimos e os trabalhadores braçais e os “changueiros”, ou “changadores”, nem se fala! Cada vez que iam à venda, pequeno armazém, o preço das mercadorias já tinha aumentado. Em contrapartida os salários perdiam constantemente o poder de compra. A política do reajuste uma vez por ano já era praticada e devastava a vida das pobres famílias. A nossa era uma delas. Senti isso no pelego, naquele ano, antes mesmo de eu completar dezesseis primaveras. Era um 'Deus nos acuda' para pagar o armazém. Mamãe conseguira crédito e comprava com a velha caderneta de compras. Esta não estava sendo zerada nos últimos tempos, especialmente, depois que o irmão mestre-padeiro foi 'sentar praça'. Prestar o serviço militar, como já me referi. O irmão Dartagnan tocava a vida dele, aos trancos e barrancos em Santa Maria. A irmã 'prendada', sempre às voltas com as freiras, não tinha de onde tirar. O irmão Estrabulega, por essa época trabalhava em serviços gerais no Clube Comercial onde até esteve por um bom tempo. Mas com a grana dele não contávamos. Ele aprendera a jogar cartas e cuidava as 'carpetas', onde recebia alguns trocados como “coimeiro” - depositário do valor das apostas. E volta e meia aparecia “liso”. Vendia qualquer coisa pra pagar suas dívidas. Quem aguentava no "osso-do-peito" era eu, sempre eu. Para minorar a nossa situação eu passara a ganhar uma pequena 'comissão' sobre determinados medicamentos que vendia. Era conseqüência da iniciativa de um novo sócio-gerente que o meu mestre-boticário tinha admitido para fazer frente às dificuldades reinantes na época. Em verdade estava treinando seu sucessor na administração da farmácia que seria vendida no ano seguinte. Eram tempos muito bicudos pra quem não tinha capital de giro. Os juros muito altos inviabilizavam tomadas de empréstimos. Tinham mais dois balconistas na farmácia, mas eles não eram muito chegados no ofício propriamente. O grosso da manipulação, curativos em pequenos ferimentos e aplicações de injetáveis eram comigo, havia algum tempo. A aplicação de injeção intramuscular, aliás, foi uma das primeiras coisas que aprendi a praticar e merece um rápido anexo. Certa vez meu mestre-boticário foi procurado para fazer uma injeção 'reanimadora' num conhecido ferroviário que estava bastante "trancucho" e sem condições de se apresentar no trabalho. O dito cujo já era reincidente. Meu mestre não estava disponível pra aquela tarefa naquele momento. Foi providencial: Prontifiquei-me a realizar a tal injeção. Meu patrão duvidando de mim, perguntou se eu saberia honrar aquela missão. Respondi afirmativamente, afinal o assistira a fazer tantas vezes. E até mostrei como proceder. Convencido, ele confiou-me a dita tarefa. Apresentei-me na casa do dito trancucho e enfiei-lhe o "prego" no bíceps, naturalmente. O 'gambá' não fez nem careta; deu-me um gorjetinha e eu feliz da vida retornei e recebi efusivos cumprimentos do mestre. Daí pra injeções intravenosas foi um pulo. E desde então, volta e meia era eu solicitado a realizar essas tarefas todas. Ah! Vive ainda e é meu vizinho, um meio-irmão do meu mestre-boticário, que me não deixa mentir. Muitos outros desafios enfrentei, durante os quase dez anos vividos no Cacequi. Quase seis anos como aprendiz e depois como auxiliar de boticário. Aprontei também, coisas de que não me orgulho. Dessas falarei depois.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Governo JK - 50 ANOS EM 5

Não mais que de repente e já estávamos vivendo o ano de 1958. Isto era quase a metade da duração do governo JK. Muita propaganda e a demagógica promessa de governo: “Cinquenta anos em cinco”, que traduzido queria fazer o visado eleitor acreditar que se eleito, o seu governo faria em cinco anos, apenas, aquilo que os outros levaram cinquenta para fazer. O JK acabou sendo eleito para governar de 1956 a 1961. Ampliou o parque industrial brasileiro, trazendo pra nosso país as montadoras americanas Chrysler e Ford, financiadas por bancos norte-americanos também pra cá atraídos. Paralelamente fomentou a popularização e facilitou o acesso a muitos bens de consumo, entre os quais a TV que naturalmente promoveria ainda mais o consumo de outros bens como o próprio automóvel, aparelhos elétricos e eletroeletrônicos e a própria TV. Promoveu a transferência da capital federal para a região central brasileira, tornando-a mais equidistante de todas as unidades da federação. Através da mídia, promoveu o desenvolvimento da região centro-oeste com a transferência da capital federal, então no Rio de Janeiro, para Brasília, no Distrito Federal. Com o consumo de toda ordem exacerbado ocorreu endividamento do Brasil devido a empréstimos junto a centros financeiros dos EUA. E por aí vai. Realmente houve crescimento de 50 anos em apenas cinco. Só que até hoje, quase cinqüenta anos após, ainda estamos pagando as contas daquele quinquênio administrativo demagógico e desleal. Vale dizer que jogou para a população ignorante o peso de suas atitudes irresponsáveis. Chego a ver semelhança com o que fizera a Coroa Portuguesa em 1822 quando entregou o Brasil para o Brasil mesmo, com a condição de que este assumisse a dívida lusa junto ao Reino Unido. Dívida essa decorrente de gastos supérfluos e até em armamento para eles portugueses tentarem combater os brasileiros evitando-lhes a Independência. Ao final o reino luso zerou sua dívida com o Reino Unido, às custas de nosso país; que a seguir tomou mais dinheiro emprestado dos ingleses, para poder promover algum investimento e tentar sair do atoleiro em que a coroa lusa nos deixara. Na minha ótica o governo JK fez parecido. Aqui está o motivo de estarmos pagando uma dívida que já foi paga várias vezes em juros. E nossos descendentes vão continuar a pagar, na maioria das vezes, sem entender como nem por quê? Naqueles quinquênio de 56-61 não havia esta modalidade de informação. Hoje temo-la. Devemos usá-la para alertar nossos patrícios que trabalham sob o peso de mais 45 por cento de impostos para pagar a irresponsabilidade e desonestidade dos administradores públicos enganadores e corruptos que solapam e destroem as armas mais poderosas de um povo: a ética e a moral. Com isto faço uma breve pausa pra refrescar as idéias. Retorno ainda com o aprendiz de boticário...

O APRENDIZ DE BOTICÁRIO.

Finalmente vou reportar-me ao então promissor ofício de Boticário no qual seria eu iniciado naquele já distante agosto de 1955. Minha experiência “relampo” como aprendiz de padeiro teria sido frustrante, não tivesse servido para me abrir a “janelinha de emergência”, e a seguir, a porta comercial de uma farmácia ou 'botica' como ainda era tratada pelos mais próximos, à maneira de chiste, naqueles dias. Cheguei, um pouco antes da sete horas da “matina”'. Uma grande vantagem pra quem costumara saltar da cama às quatro da madrugada para ir pra a padaria. Apenas pra confirmar, o proprietário repetiria a pergunta “Se eu sabia escrever?”. Confirmei a resposta dada na primeira 'entrevista': Sim, eu sabia escrever e ler muito bem. Afinal era eu um 'aluno-monitor' no quarto livro do Grupo Escolar Estadual “Marechal Hermes da Fonseca”. A maior e 'única' escola primária pública da cidade. Havia outras. Mas só essa tinha o ensino fundamental completo, com quatro turnos. Sendo três turnos diurnos, e um à noite. Por sinal que nessa escola estudaram os irmãos 'mestre-padeiro' e a "irmã-prendada", a irmã mais nova que tricotava, bordava, fazia crochê e trabalhava de auxiliar de alfaiate, quando sua saúde permitia. Ato contínuo: o proprietário da 'botica' mostrou-me uma escova de crina de cavalos, munida de cabo, um balde com água e um naco de sabão. Foi dando a 'primeira aula', ao esfregar o piso do estabelecimento, que a seguir era enxugado com um saco de algodão cuja coloração encardida denunciava sua serventia. Higienizado o piso desde a loja até o laboratório numa peça reservada, ao fundo, passamos a próxima aula. Esta era limpar os balcões de madeira e vidro. Sempre usando água e sabão. Os vidros também eram assim tratados. Porém, secava-se os mesmos com algodão embebido em álcool. As armações de madeira pintadas em branco eram secadas com pano de algodão alvo. Uma vez por mês tirava-se o pó de todas as prateleiras envidraçadas e se lhes aplicava o mesmo tratamento, já descrito. Estavam reservadas, ainda, pra o primeiro dia daquele 'aprendiz de boticário' muitas novidades. Fui enviado lá pros fundos da casa, onde na Sala de refeições serviram um lauto café matinal, em presença de uma jovem e simpática senhora e uma pequena e linda menininha. A elas se juntaria, algum tempo depois, outra princesinha que o Papai do Céu enviara através da cegonha. Estas três criaturas até hoje, graças ao Bom Deus, com alguma frequência, alegram meus olhos e coração. Pois essa senhora e as duas meninas eram a esposa e as filhas de meu novo patrão e Mestre-Boticário. Sutil e edificante lição de humildade me fora oferecida naquela radiosa manhã setembrina. Outras muitas viriam, porém aquela marcou indelevelmente minha memória. Tal qual, ou mais fortemente até, que o teria feito o gancho de açougue, cuja ferida em minha coxa fora esterilizada com ferro ao rubro, há alguns anos já passados. Após o café, retornei, agora ao Laboratório, onde eram manipuladas as fórmulas medicamentosas. Minha primeira lição foi como lavar vidros, e criteriosamente, a ponto de os mesmos serem capazes de virem a conter as ditas fórmulas medicamentosas que iriam minorar o sofrimento das criaturas, quando se não lhes curava, propriamente os males. Assim, aquela primeira manhã se consumiu. Almocei na sala de refeições da família, sozinho. Depois entendi o “porquê”. Ao meio-dia, no Cacequi daquela época, chegavam nada menos do que quatro trens abarrotados de passageiros e mercadorias que eram remanejados ou trasladados para os quatro quadrantes do nosso mui amado Rio Grande do Sul, e mesmo para outras regiões do nosso Brasil. Muitas pessoas dos fundos de municípios limítrofes, servidos pela antiga Viação Férrea do Rio Grande do Sul, VFRGS, além de infinidade de outros viajantes. Vendedores, artistas, músicos, turistas, militares e até funcionários públicos graduados em férias, políticos famosos em campanha eleitoral, faziam 'escala' ali. Era um "formigueiro de gente" na estação férrea daqueles dias. Muitos passageiros demandavam objetivamente, o comércio local, naquela hora de verdadeiro "rush". O movimento na farmácia tornava-se intenso, e então todos que tivessem experiência deveriam estar a postos para 'despachar' no balcão da farmácia. Às quatorze horas aproximadamente, súbito, 'mermava' o movimento. Era hora de retomar aulas para que um dia pudesse eu ser aproveitado nessas horas de intenso movimento. Estava explicado o motivo de eu almoçar solitário. A esposa auxiliava o esposo-boticário naquelas horas. E a menininha tomava mamadeiras fora daquele horário. Com o tempo me ia 'caindo a ficha' em relação a essa e outras muitas situações. Fato é que às quinze horas eu me dirigia célere a minha escola para concluir o penúltimo ano escolar. Começavam dias muito alvissareiros pra mim, minha saudosa e já um tanto derreada mãe e, mesmo para os irmãos que deixavam alguns níqueis em casa. Pois como trabalhadores braçais ganhavam muito pouco. Exceção ao irmão mestre-padeiro que já era profissional, embora não legalizado no então IAPI. Mas isto fica pra outros pruridos reminiscentes. Continuemos conhecendo as peripécias de um aprendiz de boticário!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O APRENDIZ DE PADEIRO

Já mencionei rapidamente minha curta passagem pela padaria. Vou contar alguns pormenores. Comecei quando o ano de 1955 transcorria mais ou menos pela metade. Entrada do inverno, frio de “renguiar cusco”. Eu vestindo a conhecida bombachinha tobiana e uma camisa de pelúcia encimada por um já apertado casaco também de riscado. Assim me apresentava para trabalhar todas as madrugadas. Às vezes eu ia com a calça curta. Pra mamãe poder lavar e passar a “bombacha de correr pintos”. Trabalhava até ao meio-dia, ou mais por vezes. Corria pra casa, almoçava e ia pra escola. Deveres de casa, eu tirava de letra. Quando sentia necessidade, estudava e realizava os deveres de casa à luz de candeeiro. Velas eram mais caras e nos traziam dolorosas recordações. Lá pelas tantas eu pulava no lombo do cavalo, desatrelado da carroça e ia fazer cobranças. Meu irmão me emprestava o chapéu. E lá me ia eu à moda de cowboy! Com calças curtas, ou bombachitas tobianas e o chapéu com aba quebrada de um lado. Cópia autêntica dos ''mocinhos'' Roy Rogers, Gene Autry, William Boyd (Hopalong Cassidy) e outros que eu vira em capa de revistas que explorara comercialmente nos trabalhos manuais já referidos. Assim caracterizado, eu riscava as ruas arenosas do Cacequi, me achando o protótipo dos caubois mirins. O velho e já sebento chapéu, com um rústico buraco na copa, fazia a comparação ainda mais autêntica, pretendia eu. Certa vez me desequilibrei, perdi o entono e o xergão (pelego de ovelha com a lã curta), voltei, desmontei, recuperei a tal xerga e recoloquei no “pilungo”. Foi "luita" pra voltar pro lombo do velho matungo. Às vezes o Urco recordava-me a velha Sarica. De tão manso que era. No aprendizado do ofício sofri muito com o tal pão ''cabritinho''. Não tinha queda pra ''mexer com as massas''. Creio que foi o que concluiu o irmão mestre-padeiro quando, prontamente, liberou-me para ir trabalhar na farmácia. As massas perderam um péssimo “sovador”, mas a farmácia ganharia um exímio aprendiz-de-boticário que mais adiante seria verdadeiramente Farmacêutico.

EPÍLOGO DE UMA ERA

Execrado por uns. Endeusado por outros que, por sinal, constituíam a grande maioria da massa de trabalhadores empregados, principalmente, nas empresas de manufatura que constituíam o, ainda modesto, parque fabril brasileiro de meados do século vinte. Período esse marcado pela administração do são-borjense Getulio Dornelles Vargas. Como presidente da república esse ilustre gaúcho tomou uma série de atitudes objetivando tirar nosso país do marasmo que ainda guardava sinais da antiga monarquia. Com a massa trabalhadora, sua protegida, com leis que a encorajavam a buscar vínculo e segurança para uma vida mais digna, transformada em ''massa-de-manobra'' política. Tal não podia agradar aos líderes e representantes minoritários das classes dominantes: Setores militares, grandes empregadores e a mídia daqueles dias, que viam como impopulares aquelas atitudes. Em realidade, eram medidas populares, pois o ''Bom-velhinho'' 'passaria' para a ''eternidade'' como o "Pai-dos-pobres". Do julgamento, a história se encarrega; até porque as correntes políticas, como em todas as épocas, servem-se do papel de imprensa que ”aceita tudo". Que nem a nossa hodierna internet. Mas este assunto é vasto e complexo, exigindo erudição e fôlego. Não sendo meu propósito dele me ocupar presentemente. Talvez retorne a ele no futuro, quando as "chilenas" estiverem mais 'cegas' , a "pena" mais gasta e os horizontes mais claros. Como todos sabem o "Bom velhinho" começou a afundar num mar-de-lama sem precedentes que tinha ancoradouro nos "porões" do Palácio do Catete, e pelo qual era o grande e único responsável. Não querendo desistir nem ser novamente "apeado" do cargo de Presidente, achou a solução no ato extremo e capital: suicidou-se. E este fato me faz recordar meu saudoso irmão Paysano. Teria ele se inspirado no ''Bom-velhinho?". Só Deus e seus "olheiros" saberão me dizer, quando para isso venha eu a estar mais preparado.

A notícia da morte do Presidente "pai-dos-pobres" teve efeito devastador na cidade de Cacequi. Até pelo fato de nessa cidade morar uma família que era tida com aparentada do falecido presidente. Por sinal tinham membros dessa família que eram meus colegas de aula. Não necessariamente no mesmo ano. Na época era comum juntar alunos de anos (hoje é série) diferentes que eram ensinados por uma mesma professora. As turmas, já pequenas, se tornavam menores devido a desistência ou reprovação. Assim eram colocadas na mesma aula (classe), sendo separadas por largo corredor central. Um aluno mais aplicado era nomeado "monitor" para auxiliar a professora. Esse monitor cuidava da separação das classes, verificava os deveres de casa, inspecionava a apresentação, comportamento e higiene dos colegas. Inclusive se mãos, pés, ouvidos e dentes estavam limpos. Cadernos e livros bem conservados, limpos e encapados. Aventais brancos longos com gravata azul para os meninos e grandes topes para as meninas deveriam estar em bom estado: Limpos, com todos os botões e sem rasgões. Tudo era anotado numa planilha e passado para a professora. A falta de cuidados com esses quesitos fazia descontar nota no boletim escolar. Eu fui um monitor para os meninos. Custou-me alguns desgostos. Na semana da pátria eu integrava um pelotão especial dos monitores, conhecido por "Pelotão de Saúde". Dava muito prestígio. Recebíamos aplausos diferenciados que nos inflava o peito de orgulho e vaidade. Meu irmão Estrabulega apreciava o meu sucesso. E a vida continuava com altos e baixos.

Foi por essa época, que certa manhã, antes do recreio bateram nervosamente na porta de nossa sala de aula. Abri, e a moça auxiliar da secretaria, aos prantos, informou nossa professora que a Diretora mandava suspender as aulas por três dias, devido o presidente Getúlio Vargas ter se suicidado. Comoção geral! Choros e gritos, especialmente dos aparentados do histórico Presidente. Demandei minha casa e, lá chegando, aos prantos comuniquei a mamãe o infausto acontecido. Ela ficou muito alarmada mas acabou se recompondo e nos acalmando. Exatamente um mês após, aproximadamente à mesma hora, nossa casa seria 'visitada' pela derradeira vez por meu irmão Paysano, vítima de semelhante infortúnio. Mamãe 'desmoronou' e só muito tempo depois,lenta e gradativamente ela retomaria à rotina de nossas vidas. Acidentalmente surpreendíamo-la esboçando um discreto sorriso que logo era arrematado com um longo e entrecortado suspirar. Cobriu-se de luto novamente. Saia de casa pra ir a missa e retornava soluçando. Não deixava de cuidar os restantes irmãos nem os afazeres domésticos. Continuava a tramar cadeiras,tricotar,cozinhar e coser. Sempre com olhar perdido acompanhado de langoroso e quase inaudível lamento. Se estávamos por perto passava-nos delicadamente a mão, como a nos encorajar com a imensa força interior de que era depositária.

A vida continuava pra os que ficaram. Reapertamo-nos entorno dela e as coisa pareceram fluir por algum tempo. O irmão Estrabulega e novas recaídas na saúde de minha irmã impediam-nos de avançar mais rápido. Da peça de 'riscado' (um tecido de algodão barato a que já referi) trazida da fazenda Primavera, ela confeccionou ''bombachas'' pra todos os irmãos, inclusive o irmão Dartagnan. Pra mim, o ''rapa-do-tacho'', até sobrou uma 'bombachinha de correr-pintos', por sinal ''tobiana'' pois fora feita de retalhos do dito riscado escuro mesclado com retalhos de outro riscado bem mais claro. Mesmo assim eu ostentava muito 'janota' aquela bombachinha. A moda tinha 'pegado' em mim. Tanto que as próximas calças curtas de verão, também viriam a ser “tobianas”. Com essas vestes eu ia à escola “bem garboso”, tendo por cima um avental feito de saco de algodão alvejado, que causava inveja em alguns colegas.Mamãe tratava os sacos de algodão, que vinham com farinha para a padaria, até ficarem alvíssimos.De uma feita,como eu era tido como bom leitor de textos, fui escalado para ler uma poesia. Tinha que fazê-lo, mais ou menos pilchado. Mas eu não tinha botas e a bombacha era fajuta. Resultado: Fui preterido. Em outra oportunidade eu deveria integrar o glorioso ''Pelotão de Saúde" de nossa escola, fardado com camiseta, calção e tênis brancos. Não havia dinheiro pra tudo. Informei essa situação pra minha professora Edi Holszhu Leitão. Ela comprou o dito uniforme e depois nos lho pagamos em suaves prestações. Oh época de gloriosas mestras! Mães e professores como tais não davam em touceira já naqueles dias. Hoje quem ler estas linhas dirá que é mentira. Asseguro-lhes: É a mais cristalina verdade!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

OIGALÊ, SETEMBRO VELHO PODEROSO!

Não é de admirar que a Inteligência Universal através de sua Onipotente Sabedoria criasse leis para regular o relacionamento dos mundos, entre si. A relação de influência ativa e/ou passiva de nosso planeta no campo energético do sistema solar, por exemplo, só pra citar. Sem envolver-me em complicadas divagações das quais eu certamente não saberia desvencilhar-me. Objetivamente: algum dispositivo legal universal determina que o eixo de nosso planeta terra, ao inclinar-se acarrete o surgimento das quatro estações. Sabemos da influência dos elementais (água, terra, ar e fogo) desde épocas que se perdem na névoa dos tempos. Sabemos que ao inverno, que é um período de hibernação ou de acúmulo de reservas de energias, sucede a primavera que é uma estação em que explodem essas energias. Daí a 'quebra' de dormência' nos seres vivos, que iniciam novo ciclo de perpetuação na Primavera. Vejamos onde pretendo chegar. É nessa estação que as plantas exibem suas exuberantes flores, os pássaros fazem parceria e nidificam e os animais em geral buscam se reproduzir. E o homem que é um animal racional, e civilizado devido às suas relações com outros homens serem reguladas por normas (leis) do Direito Civil. Aqui está uma questão que sempre me causou pruridos, e para qual nunca consegui resposta satisfatória. Por quais desígnios a Inteligência Universal decidiu punir ou aplicar corretivos em uma família tão humilde. Primeiro ceifou a vida do pai. Dez anos após podou um varão, o mais velho e ajuizado filho daquele, com vinte e quatro primaveras, justo no momento em que se ensaiava pra dar continuidade a sua progênie. Justamente aquele, um quase "arrimo" da família, porque os demais irmãos eram ainda promessa de porvir e muito teria que ser neles investido. Com estes pensamentos a heroína-mãe ''afundara'', literalmente! Recolheu-se em lúgubre silêncio que entreolhando-nos, uns aos outros, silenciosamente nos perguntavamos se 'teria volta'?. Com o tempo, ah! O tempo! "... o herói da trama..." (Claude Bernard). Pois com o passar do tempo, já no verão, chegávamos em casa e aquele ''torresminho'' de gente estava com a mesa posta nos esperando para uma singela refeição constituída de arroz com penosas na maioria das vezes. Em outras oportunidades nos esperava com um carreteirinho com feijão e alguma hortaliça. Sempre tivemos hortaliças em nossas refeições. Por vezes tínhamos macarrão. Pão não nos faltava, pois o irmão 'mestre-panificador' tinha uma cota mensal do mesmo, por direito, diziam. Vezes por outras ela passava ternamente suas mãos em nossas cabeças, geralmente enquanto devorávamos nossas pobres refeições. Então ela disparava para o quarto de onde a seguir deixava escapar soluços que nos deixavam perplexos. Nossa irmã costureira resistiu bravamente em que pese seus fracos nervos. E até já andava às voltas com umas amigas muito religiosas que viviam na igreja.Tempos depois ela tiraria um longo período na cidade de Rio Grande com as irmãs da Santa Casa de Misericórdia, dessa cidade. Quando adoecia retornava pra nossa casa e pra os cuidados dos que lhe restavam. Nessas oportunidades era convidada a trabalhar como costureira, no que era exímia. Tricotava muito bem. Crochê, aprendera um pouco com nossa mãe. E assim, aos “tironaços” da sorte íamos administrando nossa vida. Mais um ano passara. Eu sempre bem na escola e fazendo pequenas “changas” que rendiam os ditos níqueis para me ajudar na escola. Meu irmão imediatamente mais velho revelara-se um tanto “maleva”. Não estudava e às vezes arrumava uma briguinha, dessas de guri. Quando o oponente era flagrantemente mais franzino que ele, lascava esta desculpa pra me ver levar a pior: "Não vou sujar as mãos te batendo. Pra ti, boto meu irmãozinho". O desprezado então se virava pra mim e geralmente eu "pagava o pato". Ocorre que pra ele o moleque podia ser fraco porém era mais parrudo do que eu. Com o tempo aprendi a defender-me um pouco. Entretanto rendeu-lhe o apelido de Estrabulega. Teve outros mas esse, que mais o incomodava, permaneceu por longo tempo. Foi por essa época que mamãe sacou-o da escola e colocou-o como aprendiz-de-carpinteiro. Os demais irmãos estavam sempre trabalhando. Eu, das “changas” fui para a padaria pela mão do irmão mestre-padeiro.