terça-feira, 29 de setembro de 2009

INCERTEZAS NO ABIVAQUE !

Tanto quanto possível, serei moderador com respeito ao que vivenciei, juntamente com os demais companheiros de caserna, digo, companheiros de estábulos, em geral. E parceiros de ambulância, em particular. Já referi, que por algum tempo fomos vizinhos de alguns bovinos. Possivelmente alguns expoentes de raças que iriam ser exibidos na exposição agropecuária de 1961. Ou eram os remanescentes daquela exposição. Em qualquer das hipóteses, o acontecimento máximo da economia primária do Rio Grande do Sul estaria prejudicado naquele ano. Fato é que convivemos, lado a lado, com os 'indiferentes' quadrúpedes por algumas semanas. Durante as quais, cada instante, de nossas vidas, era marcado por incertezas. Aos poucos recebíamos informações, na maioria, desencontradas. Ora éramos informados que nosso comboio seria desembarcado e avançaria por terra para o centro do país para combater forças militares que de lá se deslocavam para o sul. Às vezes soava o 'alarma' e as luzes ainda acesas, eram apagadas. Lá pelas tantas retornava a claridade.

- Ufa! Passou! Fora alarme falso. Não ocorria tumulto. Inadvertidamente eram realizadas 'formaturas-relâmpagos' para testar o condicionamento da tropa. Humana, claro! Vez que os quadrúpedes a tudo presenciavam, sempre remoendo. Apáticos.

Ligação telefônica com Santa Maria, não consegui uma só vez. Assim não tinha informações concretas, nem de minha família. A tensão nervosa e psicológica era constante. Tanto que certa manhã o ordenança apareceu na enfermaria do estábulo, digo, enfermaria de campo improvisada no estábulo. Fora buscar um remédio para o nosso Comandante, Coronel Ito do Carmo Guimarães que estava com uma tremenda cefaléia, dor de cabeça mesmo. O oficial médico não estava ali, no momento. Após uma rápida vasculhada, o sargento enfermeiro concluiu que teria que ser a 'velha sulfa de guerra', usada tanto pra unha encravada como pra queda de cabelo.

Argumentei:

- Não sargento... Temos Dipirona do LAFE, Laboratório Farmacêutico do Exército, disse. E fui apontando onde se encontrava e incumbido de levar o analgésico ao importante paciente. Aproximei-me do dito cujo, 'colei os cascos' e perfilado, em continência, apresentei-me:

- Soldado 796, ex-meeiro, auxiliar de farmácia e atual padioleiro do SSR desta Corporação. Trago-lhe este medicamento enviado pelo sargento Fulano. Tome um agora. Se necessário tome outro mais tarde. Pedi licença para retirar-me.

- Permissão concedida, disse ele. Bati os cascos novamente, fiz “meia volta vou ver” e com o pé esquerdo, rompi a marcha de retorno pra enfermaria improvisada. Na passagem, sempre teso, observei de “soslaio”, uma vaquinha ruminando e ainda indiferente a tudo. Recebi o olhar de aprovação do graduado enfermeiro e colega. Poucos dias depois o boletim de campanha em sua 4ª parte - Justiça e Disciplina, publicava um “elogioso reconhecimento” ao meu desempenho como padioleiro. Outro viria. Considerando agora minha apresentação com roupas e coturnos sempre impecáveis. Olha aí! Novamente o sucesso a testar minha “pequenitude”.

Aos poucos a “cortina de fumaça” se ia dissipando. A julgar pelas folgas que ganhávamos, e durante as quais explorávamos as ruas de Porto Alegre, desde onde estávamos 'acantonados' até o centro. E vice-versa. Embora muito próximo, jamais me ocorreu conhecer o estádio do imortal tricolor GFBPA. Até mesmo pela grana muito curta. Tinha acabado o dinheiro ganho no Cacequi. Os primeiros soldos eram pra pagar o saco de roupas, calçados e artigos de higiene, já recebidos. Somente no mês seguinte, outubro, eu veria os “cobres”. Algum plantão, ou “guarda de dia”, pra um ou outro colega da cidade, minorava minha “pindaíba”. E com um bom saldo na poupança, em Cacequi. Oh, louco!

Lá pelas tantas um grande bulício, no bivaque, anunciou que começaríamos a regressar no dia seguinte. Dito e feito. Os carros blindados tinham permanecido nos vagões férreos. A ambulância, os Jeeps com cisternas e outros reboques não deram muito trabalho. Como inúmeras vezes, ouvira mamãe dizer quando voltávamos das fazendas onde íamos vender mantimentos: "Pra querência os bois vão com a regeira solta”. O retorno embora rápido, não deixou de nos pregar peças, principalmente pra mim que estava numa peladura de fazer dó. Quem tinha reservas, comprava nas paradas e estações férreas, tudo o que ofereciam pra comer; desde pastéis até embutidos, bolos fatiados, frango e peixe frito. Tudo que pudesse aplacar a fome. Eu só comia com os olhos. Viajava ao lado de um primeiro sargento que “despacito” ia fazendo desaparecer em delicadas rodelinhas, uma tripa de salame. Eu mantinha o olhar cristalizado no “toco” de embutido. Mal me continha. O sargento “se tocou”. Indagou se eu aceitava um pedaço daquele alimento, ao tempo em que me esticava a “xerenga” com uma fatia que não devia ser mais espessa que uma moeda de um real.

- Afirmativo! Respondi e passei a mão na “moedinha” já com a boca escancarada. Joguei direto “nos peitos”, digo, na goela. A “moedinha” passou direto e... –“Glup”! Antes que pudesse agradecer, batia na parede do estômago. Fiquei com os olhos que era um “Cururu” esperando por outra. Não veio, pois o toquinho restante tinha sido deglutido pelo “generoso” sargento. Com esse lanche enfrentei e conclui o restante da viagem até Santa Maria. Claro que ainda recebemos uma refeição de café com leite, pão e mel. A retirada dos blindados dos vagões férreos não acompanhei. Ocupei-me da ambulância e demais equipamentos pertinentes ao SSR do qual era empregado. Ao anoitecer do dia em que chegamos de retorno, fomos liberados para visitar nossos familiares.

2 comentários:

Pauta Cifrada disse...

Essa milicada sempre rendeu buenas histórias...
Tá beiçudo!!!

Dezembrino de Oliveira Coelho disse...

Certamente tens das 'tuas'.Teremos que vertê-las em prosa e verso.