Sendo eu o 'rapa do tacho' me concediam algumas regalias mas assim mesmo nas gélidas manhãs de inverno,lá pelos sete ou oito anos em diante, deveria apanhar uma batata quente no borralho e ir oferecer rama de batatas às vacas que estavam sendo ordenhadas pela mãe e um ou outro filho, na 'mangueira'. Já sabia que se a mão congelava com a rama gelada devia trocar a batata pra essa mão. Um pouco mais tarde, às vezes, era 'convidado' a mostrar o trilho para os bois de tração, guiando-os para que não saíssem da verga, assim chamado o sulco que o arado ou a charrua deixa no solo. Foi por essa época que ganhei um dos raros brinquedos industrializados: uma enxada com cabo de madeira-de-lei, vara de guajuvira, creio; e então, cheio de disposição, saí a desferir golpes desordenados no mato doméstico, até que um mano mais experiente me veio 'sugerir' que aprofundasse a folha da enxada nas guaxiúmas (na época era guanxuma mesmo, e deve vir daí a expressão 'se atracar nas guanxumas'). Ah estava esquecendo!. Em verdade o primeiro brinquedo foi um regalo de minha madrinha e tia Ana: um patinho vestido com camisa e calças brancas, gravata de tope azul, casaca verde com botões azuis e lapela vermelha com uma cartola desta mesma cor.Os pés, brancos, eram fixados em uma base verde munida de quatro rodinhas vermelhas, tudo em madeira, com um cordão para ser puxado. Estava autorizado a brincar com o dito cujo somente em ocasiões especiais. Ainda está comigo, e, como eu todo anquilosado, desbicado e tararaca. Era mesmo uma “tetéia”, se comparado com as réplicas rudimentares de engenhos de arroz acionados por carretéis de linha de costura nos quais fazíamos dentes que articulados a outros, formavam grosseiras mas eficientes engrenagens com que brincávamos como se fossem os engenhos e fazendas da região. Nossa versão servia-se de areia pois usar arroz na engenhoca era desperdício intolerável, quase um sacrilégio.
Pois é isso mesmo ou quase, se for aceito algum exagero, claro!. Meu engenho de arroz era abastecido por caminhões feitos com caixeta de marmelada tendo a cabine e capô em metal de latas de sardinha. As rodas dos veículos eram rodelas de varas de madeira roliça seca. Até que no início aproveitávamos o barro de argila cozido ao sol, mas como não tínhamos garagem, volta e meia o caminhão aparecia “arriado” e a “carga” perdida, geralmente após uma chuvarada em que as rodas de argila esboroavam . Daí a feliz troca por madeira. Essa alternativa, aliás, muito 'progressista', aperfeiçoou a incipiente pirataria de Ford Gigante e Chevrolet Tigre. Com essa pequena "frota" transportávamos "bois" e "vacas" (pequenos ossos) além do arroz beneficiado em nossos 'engenhos' para serem consumidos na forma de "arroz-de-carreteiro" pelos trabalhadores nas vastas fazendas de arroz que, à época, empregavam dezenas de trabalhadores braçal. Era comum naqueles anos virem colonos de 'cima da serra' trabalhar nas 'safras' das grandes empresas de arroz da região central. A mecanização da agricultura ainda não despontara naquelas paragens. Abatíamos e transformávamos suínos em linguiça que juntamente com galinhas, ovos, amendoim, batatas, feijão e outros frutos eram vendidos ou permutados nas cantinas das estâncias por produtos que não produzíamos tais como Café, sal, açúcar e carne de rês para charquear. É claro que a metade de tudo o que era produzido destinava-se ao senhorio dono da terra que enviava empregados para "ajudar" nos trabalhos na época da safra.
Nunca consegui chegar a uma conclusão irrefutável a cerca das causas da estagnação e falência do pequeno agricultor. Arrisco-me atribuir a múltiplas causas todas relacionadas a equivocadas e centralizadoras políticas sociais que não souberam aproveitar o "estouro" dos meios de comunicação (amadurecimento da radiodifusão e avanço da TV). Ousaria até atribuir ao " Brasil de bombachas " da era Getulina-Eurico Dutra, pois enquanto nos EUA e Europa a propaganda pró-guerra corria paralela a programas de investimento e valorização sociais, em nosso país este era negligenciado. O rurícola daqueles dias explorava a terra à exaustão. Quem tinha bastante terra podia executar rodízio e garantir empréstimo bancário pois também tinha cacife político para arrebanhar votos de cabresto. O pequeno agricultor e, especialmente o meeiro, tinha que se submeter ao Senhorio nessa condição e pelo voto. Era morrer trabalhando ou abandonar a terra ocupada. Destarte nossa heroína-mãe deveria viver remoendo silente, como era seu feitio, uma maneira de sair daquele atoleiro. E ela era mesmo uma heroína, daquelas que inspiraram o poeta Jayme Caetano Braum a versejar: “...morro e não me entrego carregando o fardo maldito que desde pinto carrego...” “Eta” mulher valente e intimorata!
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