domingo, 20 de setembro de 2009

FIM DA ERA VARGAS.

A situação tinha ficado deveras preocupante, a julgar pelo semblante de minha mãe. Devia ser o tal dinheiro, que sendo macho não só não dava cria como estava a desaparecer. Ah! Tinha a tal de menopausa, mas isso nem passava pela cabeça dela. Eram modernices que nada tinham a ver com sua performance. A coisa ficou ainda pior quando minha irmã mais moça foi "rejeitada" no convento em Erexim devido ao fato de não dispor de dote. Entre períodos de crises nervosas e normalidade ela trabalhava numa alfaiataria. E até me incentivou a praticar o ofício. Mas eu não era chegado ao mesmo. Meu irmão "maestro-moageiro", muito “bueno” de serviço, tinha deixado o panifício e retornado ao campo,em uma fazenda de ovinocultura no Alegrete, atraído por proposta muito vantajosa.Vários meses depois retornaria decepcionado, magro,malroupido e sem dinheiro. Acolheram-no, novamente, na antiga padaria, agora como Mestre-de-Quadra, um prêmio a sua dedicação.Eu,de rebenque em pé, estava indo para o terceiro ano, em primeiro lugar ,com louvor e um catecismo , presente da amada professora Elida, que no ano seguinte deixaria de nos lecionar para casar-se em Livramento. Desiludido, chorei copiosamente sua perda. Quando fui aprovado para o quarto ano, novamente com louvor, meu irmão imediatamente mais velho sofreu nova reprovação. Incontinente, mamãe tirou-o da escola e arranjou-lhe emprego de aprendiz de marceneiro no qual ele não esquentou muito. Por meu turno eu arranjava alguns níqueis com os colegas mais acomodados e dispostos a pagar: passava o caderno a limpo pra um, vendia meus trabalhos manuais 'premiados' pra outros. Colava imagens de cavalos em tábuas compensadas finas, que eram recortadas e colocadas em pedestais, lixadas e vendidas pra colegas ou amigos. Carregava água potável pra um casal de amigos. Para os mesmos eu carregava roupas para a lavadeira e as trazia de volta, após lavadas e passadas. Desta maneira eu ganhava alguns caraminguás para auxiliar nas despesas com a escola. Por essa época andávamos tão apertados que minha amada mãe teve que vender até suas alianças de casamento para honrar as despesas mais prementes. Minha irmã volta e meia recaía doente e consumia divisas em tratamento médico. Na escola eu não marcava bobeira. Tinha até esquecido da velha lousa-abacial que a mamãe vendeu ou permutou por algum gênero de primeira necessidade. Tanto que ela já tinha cumprido seus nobilitantes desígnios. A coisa andava de mal pra pior quando meu irmão mais velho,o Paysano, retornou, desta feita pra ficar. Deu uma afrouxada na huayaca e nos retemperou os ânimos. Ele seria capataz da estância de seu padrinho, nas cercanias do cerro do Loreto pras bandas de onde procedêramos há poucos anos passados. A situação tendia a se recompor. Meu outro irmão, agora guindado a padeiro profissional ou mestre-de-padaria dispondo de uma vaga pra “repartidor” me chamou para ocupá-la. Prontamente me apresentei. O tal “reparte” ou entrega domiciliar começava às cinco horas da manhã e ia até as dez ou onze horas. Eu deveria estar na padaria lá pelas quatro horas da madrugada, para prender o cavalo à carroça, carregá-la e iniciar a entrega às cinco horas, religiosamente. Foi numa época em que as escolas funcionavam em três turnos. Eu arranjei para freqüentar o terceiro turno que durava das quinze às dezenove horas. Assim conciliaria trabalho e escola. Foi a glória pra mim! Com treze anos de idade, trabalhando meio-turno, sob o olhar atento de meu irmão que já fora maestro-moageiro e agora era mestre de quadra e ainda estudando no turno mais difícil sem comprometer o aproveitamento escolar. Se melhorasse estragava. Enquanto isso meu outro irmão, imediatamente mais velho, não se fixava em lugar algum. Já experimentara trabalhar em uma granja de leite, como servente de pedreiro e estava outra vez de aprendiz auxiliar de marceneiro-carpinteiro com um seu padrinho. Minha irmã recuperara bastante a saúde e continuava trabalhando na alfaiataria, confeccionando calças. Mamãe descarregou um pouco o semblante, ela que jamais tirou totalmente o luto pelo falecimento de meu pai. O irmão Dartagnan, também muito “pegador”, a despeito de sua menor estatura,pois nascera 'prematuro' de sete meses, estava sempre empregado.Eu, o “rapa-do-tacho”, continuava a rotina, com sucesso, graças a Deus. Nos fins-de-semana raramente estávamos todos em casa. E quando acontecia de estarmos juntos com o meu irmão imediatamente mais velho, geralmente dava "briga", pois ele não parava em emprego. Certa manhã,por volta de seis horas, ao entregar o pão através da ''janelinha'' de emergência de uma farmácia o proprietário me interrogou das condições de trabalho na padaria,quanto me pagavam, se eu estudava, etc, etc... Respondi honestamente todas as perguntas e me fui. Outra madrugada na mesma farmácia e o proprietário, ainda meio sonolento, perguntou se eu não queria trabalhar para ele: oferecia-me as mesmas condições da panificadora com possibilidade de um bom adicional se eu trabalhasse direito. Ah! E ainda me ensinaria o ''ofício'' de farmacêutico. Prometi-lhe uma resposta assim que falasse com minha mãe. Falei com ela que lembrou ter sido meu irmão, o padeiro, que me conseguira aquela vaga, ele teria de ser ouvido. Ouviu minhas ponderações e liberou-me pra seguir meu futuro caminho. Dois dias depois estava eu a caminho da farmácia, onde iniciava às sete horas, almoçava no local e às quinze horas ia para a escola. Com o tempo passei a dormir na farmácia e saía só para ir a escola. Pagou-me tudo o acertado e mais um pouco e não descontou os vidros de medicamentos e de perfumes que eu quebrara por estabanado ou preocupado em acertar e aprender aquele nobre ofício de boticário (ou farmacêutico, hoje!). O “rapa-do-tacho” que já fora meeiro, “changueiro” e padeiro, agora seria boticário, se Deus quisesse e... Deus quis!

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