quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Tempos Bicudos

No capítulo anterior, abordei ligeira e superficialmente, o governo de JK com seus frutos saborosos pra uns e sem sabor ou até “amorgosos” para outros. Entre esses “outros” se encontrava nossa família. Vindos da área rural, ainda não tínhamos nos encontrado de modo satisfatório. A inflação, novidade pra nós, favorecia só os comerciantes maiores e espertos que atualizavam seus preços regularmente. Os pequenos varejistas também sofriam. Os assalariados mínimos e os trabalhadores braçais e os “changueiros”, ou “changadores”, nem se fala! Cada vez que iam à venda, pequeno armazém, o preço das mercadorias já tinha aumentado. Em contrapartida os salários perdiam constantemente o poder de compra. A política do reajuste uma vez por ano já era praticada e devastava a vida das pobres famílias. A nossa era uma delas. Senti isso no pelego, naquele ano, antes mesmo de eu completar dezesseis primaveras. Era um 'Deus nos acuda' para pagar o armazém. Mamãe conseguira crédito e comprava com a velha caderneta de compras. Esta não estava sendo zerada nos últimos tempos, especialmente, depois que o irmão mestre-padeiro foi 'sentar praça'. Prestar o serviço militar, como já me referi. O irmão Dartagnan tocava a vida dele, aos trancos e barrancos em Santa Maria. A irmã 'prendada', sempre às voltas com as freiras, não tinha de onde tirar. O irmão Estrabulega, por essa época trabalhava em serviços gerais no Clube Comercial onde até esteve por um bom tempo. Mas com a grana dele não contávamos. Ele aprendera a jogar cartas e cuidava as 'carpetas', onde recebia alguns trocados como “coimeiro” - depositário do valor das apostas. E volta e meia aparecia “liso”. Vendia qualquer coisa pra pagar suas dívidas. Quem aguentava no "osso-do-peito" era eu, sempre eu. Para minorar a nossa situação eu passara a ganhar uma pequena 'comissão' sobre determinados medicamentos que vendia. Era conseqüência da iniciativa de um novo sócio-gerente que o meu mestre-boticário tinha admitido para fazer frente às dificuldades reinantes na época. Em verdade estava treinando seu sucessor na administração da farmácia que seria vendida no ano seguinte. Eram tempos muito bicudos pra quem não tinha capital de giro. Os juros muito altos inviabilizavam tomadas de empréstimos. Tinham mais dois balconistas na farmácia, mas eles não eram muito chegados no ofício propriamente. O grosso da manipulação, curativos em pequenos ferimentos e aplicações de injetáveis eram comigo, havia algum tempo. A aplicação de injeção intramuscular, aliás, foi uma das primeiras coisas que aprendi a praticar e merece um rápido anexo. Certa vez meu mestre-boticário foi procurado para fazer uma injeção 'reanimadora' num conhecido ferroviário que estava bastante "trancucho" e sem condições de se apresentar no trabalho. O dito cujo já era reincidente. Meu mestre não estava disponível pra aquela tarefa naquele momento. Foi providencial: Prontifiquei-me a realizar a tal injeção. Meu patrão duvidando de mim, perguntou se eu saberia honrar aquela missão. Respondi afirmativamente, afinal o assistira a fazer tantas vezes. E até mostrei como proceder. Convencido, ele confiou-me a dita tarefa. Apresentei-me na casa do dito trancucho e enfiei-lhe o "prego" no bíceps, naturalmente. O 'gambá' não fez nem careta; deu-me um gorjetinha e eu feliz da vida retornei e recebi efusivos cumprimentos do mestre. Daí pra injeções intravenosas foi um pulo. E desde então, volta e meia era eu solicitado a realizar essas tarefas todas. Ah! Vive ainda e é meu vizinho, um meio-irmão do meu mestre-boticário, que me não deixa mentir. Muitos outros desafios enfrentei, durante os quase dez anos vividos no Cacequi. Quase seis anos como aprendiz e depois como auxiliar de boticário. Aprontei também, coisas de que não me orgulho. Dessas falarei depois.

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