segunda-feira, 21 de setembro de 2009

DECÊNIO SEDENTO

Já mencionei que vivíamos sob a égide getulista, em pleno decênio iniciado em 1950. Se a década de 40 bebera lágrimas de minha família pela morte de meu pai, nesta de 50 também não seríamos poupados. Corria o ano de 1954, quando setembro se encaminhava para consumir seus últimos sete dias. Havia eu percorrido alguns metros na rua que me levava a escola, ainda muito próximo de nossa casa,quando em frente a ela estacionou um caminhão e deste,imediata e inadvertidamente começaram a remover uma lona, ou seria um couro, em baixo da qual estava um caixão fúnebre que,ato contínuo, carregaram em direção à porta da frente de nossa casa. Retornei e ao adentrar na sala já deparei com o desesperado pranto de minha mãe e irmã mais nova. Levantada a tampa do ataúde, e removido um poncho ainda ensangüentado, revelou-nos a dimensão da desgraça. Levamos alguns segundos para acreditar no que nossos olhos incrédulos assistiam. Era o que restava de nosso amado filho e irmão Paysano que fora trasladado da sede da fazenda de seu padrinho, onde há alguns meses assumira como capataz. Vinha receber as derradeiras homenagens e lágrimas que se apresentavam aos borbotões pra seus inconsoláveis e descontrolados mãe e irmãos. Ao meio da tarde, ou pouco mais, retornaria para ganhar moradia definitiva no ''campo santo'' no qual vizinharia com o pai que aí ''residia'' já há dez longos anos. Teria também como vizinho outro irmão cuja vida fora ceifada pelo "crupe" diftérico, ainda nenê, do qual não tinha falado ainda, até pelo fato de não tê-lo conhecido. Um disparo, à queima-roupa, com um ''quarenta-e-quatro'' cano longo, desmanchara o pavilhão acústico no lado oposto ao de entrada, pondo fim à vida de mais um desses “torenas” que passam nesta vida e ficam no anonimato.Por certo, a Inteligência Universal me está ensejando oportunidade de resgatar a memória de um deles, pelos menos, e humildemente. Mamãe mergulhou, arrasada, no mais profundo buraco que até então presenciáramos. Seria o fim?!. Agora que o irmão Paysano havia retornado, depois de correr mundo entre os, ainda 'temíveis', castelhanos; agora que as coisas pareciam começar a entrar nos eixos. Justo agora quando se esperava que ele casasse, formando nova família e aumentando a parentela. E o motivo! Qual a causa tão poderosa para um "vaqueano" de duas ou três bandeiras, embora com apenas vinte-e-quatro “primaveras”, cometer tão extrema e fatal barbaridade contra si, e os que ficariam inconsoláveis? Pois fora rabo-de-saia, a julgar pelas 'candidatas' que lhe caíam em cima quando ele aparecia na cidade. Delas o irmão Paysano teria “apartado” uma. Nossa mãe conhecia a dita cuja e desencorajou meu irmão a se comprometer com ela. Fôramos criados e acostumados a não contrariá-la. O irmão era da ”velha têmpera” e não queria contrariar mamãe. Na estância, à noite, ruminando suas idéias, com a solidão por conselheira, e má conselheira por sinal, deve ter tomado a monstruosa e capital decisão. Costumava dizer que sempre se encontrava uma saída. A saída que encontrou, desgraçadamente, foi o suicídio por um rabo-de-saia que não valia uma ''pitada de crioulo-podre". Por favor, não ponham racismo nisto. "Crioulo-podre" é um cigarro de palha de milho ou papel especial 'recheado' com fumo de qualidade inferior ou duvidosa. Feito o devido esclarecimento reporto-me à sede de sangue daquela década. O senador Salgado Filho que perdeu a vida em desastre aviatório ali por perto mesmo do Loreto. O então presidente Getúlio Vargas, que também teve que tomar uma decisão extremada. Desses intrépidos, incluindo meu saudoso irmão Paysano, verteu o sangue para aplacar a sede daquele setembro de 1954.

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